quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

TÉCNICA. PARA QUÊ?, Por Ana Paula Sousa

Dominado por obras conceituais, o mercado nacional deixa para trás os pincéis e cola-se à “última tendência”, seja ela qual for

Em um jantar para alguns intelectuais de São Paulo, oferecido logo após o encerramento da última Bienal de Veneza, em junho, um amante das artes plásticas aproveitou a presença de uma crítica à mesa para satisfazer a curiosidade. “Como foi a exposição do Lucian Freud?”, perguntou, referindo-se à mostra dedicada àquele que é considerado o último grande pintor vivo. Taça de vinho na mão, a crítica não hesitou: “Ora, eu não vi. Vou perder meu tempo vendo pintura?”

O episódio, de tom anedótico, mas conteúdo real, deixou perplexo o admirador de Freud, artista inglês nascido em 1922, neto de Sigmund Freud. Mas, no circuito em voga no País, despropositada não é a resposta que ouviu, e sim a pergunta que fez. Dominado pela arte conceitual, o mercado brasileiro passou a considerar passadista toda a criação dependente de pincel, tela e domínio técnico.
“Técnica? Isso não é mais nada, minha filha. Tem artista com obras que você própria pode executar”, ensina Luisa Strina, uma das mais bem-sucedidas marchands do País. “O que precisa é ter conceito”, remata, com o dedo indicador a tocar levemente na têmpora direita. “As nossas instalações fazem o maior sucesso no mundo.”
É “no mundo” que o mercado de arte contemporânea brasileira vai buscar endosso para os preços que pratica e para os artistas que promove. Se Beatriz Milhazes (nascida em 1960) foi comprada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) por US$ 90 mil, quem ousa contestar seu valor? Se o escultor Tunga (1952) é selecionado para a Documenta Kassel, na Alemanha, que importa se a maior leiloeira do País, Soraia Cals, nunca vendeu uma obra assinada por ele?
“Seja a obra boa, seja ruim, o que a coloca em evidência é o marketing. E dizer que o MoMA comprou é um marketing infalível. No Brasil, a empáfia cola”, crava o crítico Olívio Tavares de Araújo. A primeira coisa a ser lembrada nessa discussão, observa Araújo, é que houve um deslocamento de poder decisório do campo intelectual para o campo mercadológico.
“Temos um mercado que, de maneira mais ou menos velada, controla as instituições, como os museus, e o pensamento. Os galeristas tornaram-se competentes negociantes”, resume. Para compreender a asserção, nada como tornar à galeria de Luisa Strina, localizada na rua Oscar Freire, nos Jardins, em São Paulo.
Olhos pregados na tela do computador, Luisa, depois de explicar que “arte é conceito”, deleitou-se com a consciência da sua mente avançada. “O brasileiro ainda é muito conservador. Tem 10 ou 15 artistas contemporâneos que estão em museus do mundo todo. Mas quem aqui conhece Cildo Meirelles? Quem conhece o Leonilson, que é o artista brasileiro com maior número de obras em museus internacionais? Sabe, quem desfaz disso é limitado, convencional.”
Os clientes da galeria, assinala Luisa, são as pessoas de mente aberta. “É gente que sabe que o Marepe vai expor no Pompidou, em Paris. Que modernista expôs sozinho no Pompidou?”, indaga, comparando o jovem baiano Marepe (1970), que faz arte a partir de objetos, com Portinari (1903-1962) ou Di Cavalcanti (1897-1976) “Meus clientes são pessoas jovens. Já tive até um cliente de 12 anos que veio aqui comprar”, – a caixa-d’água assinada por Alexandre da Cunha, talvez.
Ao lado de Luisa Strina, na linha de frente da arte intelectual – que sente calafrios diante de qualquer manifestação figurativa –, está a galeria Fortes Villaça. Feito agência de publicidade, a casa tem até um “diretor criativo”. Ele se chama Alexandre Gabriel, tem 29 anos e começou a carreira como assessor de imprensa. “Me conta a sua matéria”, começou, não sem um toque de cortesia. E a seguir explicou sua função. “Cuido da criação da imagem do artista, ajudo a criar produtos, como livros e catálogos, e agora as meninas (Márcia Fortes e Alessandra Villaça, as sócias) querem que eu atenda a imprensa também.”
Gabriel cumpre de modo participativo o papel. “A primeira coisa que eu acho que você tem de mostrar para o público da sua revista é que existe uma diferença entre arte e decoração.” A Fortes Villaça, que tem no portfólio estrelas como Beatriz Milhazes, Adriana Varejão (1964) e Vik Muniz (1961), trabalha com arte. Por saber disso, a repórter de CartaCapital, ao ver sobre a mesa um par de sandálias havaianas bem grandes, compostas de pequenos quadrados brancos, fez uma pergunta genérica para evitar a gafe de chamar de decoração o que talvez fosse arte.
“E essas sandálias?” Gabriel foi direto. “US$ 2 mil.” Ao notar certo espanto, emendou: “É uma série dos anos 60, de Los Carpinteros, de Cuba. É uma série supercobiçada. Enfim... uma coisa superimportante que eu queria te dizer é que a gente participa, todos os anos, de cinco feiras internacionais”.
A ponte aérea internacional é outra das pontas a unir todas as galerias de grife. Raquel Arnaud, representante de alguns dos mais caros artistas, como Sergio Camargo (1930-1990) e Mira Schendel (1919-1988), deve ao exterior 40% do faturamento. Ainda assim, freqüenta as feiras com menos gosto que Luisa e Gabriel. “São muito grandes, têm muita mistura de linguagem.” Na França, então, fica de cabelo em pé: “Os franceses ainda estão com a cabeça muito voltada para o impressionismo. Temos um trabalho enorme de explicar, explicar, e, no fim, não compram”.
Apesar dos percalços, ainda é mais fácil que no Brasil. “Brasileiro compra mais picadinho. E ainda tem o vício de parcelar”, queixa-se Raquel. Outra coisa que tira a galerista do sério é a expressão “arte contemporânea brasileira”, que, a seu ver, não passa de rótulo. “Arte contemporânea é arte contemporânea. Por que brasileira? Vamos botar uma bandeira nas obras? Identidade brasileira deixa para o futebol.”
Mas será que o sucesso internacional é mesmo tão grande? Dona de uma galeria que trabalha essencialmente com gravuras e desenhos, Mônica Filgueiras diz que, de fato, alguns artistas brasileiros conseguiram entrar no circuito internacional. Mas pondera: “Quando eles aparecem em leilões da Sotheby’s, em geral, são os próprios brasileiros que os colocam lá. Eles pagam US$ 1,5 mil para ter uma imagem da obra reproduzida no catálogo. É, no fundo, uma estratégia de mercado”.

Os olhos voltados para o exterior são parte de um sistema de autorização recíproca, em que galeristas, museus, artistas e críticos definem o que é arte hoje no Brasil. Fora do “mercado”, numa casa onde as paredes não são brancas como as das galerias e onde pincéis ainda repousam em canecas, o pintor Sergio Fingermann (1953) destrincha esse sistema a partir da formação do artista. “A formação do artista se empobreceu. Ele perde a experiência de ateliê, de construção de linguagem e domínio de expressão e opta por escolas e faculdades. Essas escolas, integrantes do sistema da arte, tutelam a produção e indicam que caminho ele deve seguir.”
Fingermann considera que, cada vez mais, o artista perde o sentido de ofício e, por isso, dilui-se a marca pessoal nas obras. “Valores como a subjetividade estão sumindo, porque a produção busca uma identificação com o que vem de fora. Não por acaso, se parece muito com a ‘última tendência’. É uma produção que tem a ver com a novidade, não com o novo, e que visa, essencialmente, ser aceita”, analisa.
Como professor, Fingermann nota que a nova geração não tem paciência de desenvolver a técnica. “Deixou de haver o tempo de maturação. O jovem saqueia o saber do outro e, na pressa de satisfazer a vontade do circuito, desqualifica as experiências anteriores à dele. Como o mercado não tem critérios, esses ‘saques’ são aceitos como novidades. O pensamento antecede o fazer artístico. O desejo de sucesso antecede o trabalho.”
Quando o conceito é anterior ao fazer artístico, inverte-se o sentido da percepção da obra. Como formulou Heidegger, ao olhar para a Pietà, de Michelangelo, o público vê uma mulher, depois pensa na morte e, ao fim do percurso, é capaz de dizer: “Isso era uma pedra”. Hoje, o percurso é oposto. O público olha para uma pedra – ou para uma lâmpada – e tem de descobrir que “a coisa” é arte. “Duchamp fez isso num determinado momento. Hoje, qual o significado dessas ‘coisas’?”, pergunta Fingermann. “O que a gente quer com a arte é recuperar a experiência de ver e transformar a experiência de ver em conhecimento.”
Isso é o que quer Fingermann. Mas não os jovens consumidores. Vindos principalmente do mercado financeiro, das grandes corporações ou do mundo da publicidade, vários dos novos colecionadores têm na ponta da língua a palavra “revenda” – alguns são, na verdade, antigos operadores da Bolsa que consideram a arte mais rentável que ações. Quem não pensa na valorização futura da obra pensa, principalmente, na harmonia com o sofá da sala.
“Grande parte do mercado é sustentado pela decoração. Tanto é assim que, de vez em quando, o comprador liga para a galeria e pergunta: ‘De quem é mesmo essa gravura?’”, relata a galerista Mônica Filgueiras. Para esse sistema em que todos tateiam no escuro contribuiu também o fim da crítica de artes plásticas na imprensa.
Esse processo, que começou na década de 80 e se solidificou nos anos 90, transformou a cobertura de artes plásticas em mero guia informativo. “Isso aconteceu, em parte, porque a imprensa abriu mão desse papel e, em parte, porque há uma tentativa hegemônica, que é a arte dita de vanguarda, e a verdadeira crítica atrapalharia”, avalia o crítico Jacob Klintowitz. A reflexão, quando existe, integra o sistema de arte, ou seja, é feita por curadores e, em geral, é ininteligível. “Isso é algo deliberado”, aposta Olívio Tavares de Araújo. “O poder é mantido através da exclusão. Escrever difícil é uma estratégia voluntária de ocupação de espaço.”
E o espaço foi mesmo ocupado. Escasseadas as grandes obras dos modernistas – todas nas mãos de colecionadores –, o dinheiro empregado em arte voltou-se para a dita novidade. “Quem tem os bons quadros de Di Cavalcanti, Pancetti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Segall ou Ismael Nery não quer vender”, observa o marchand Valdemar Szaniecki. Esses artistas ainda têm os mais altos preços do mercado, mas há certas obras de Di Cavalcanti que custam o mesmo que um quadro de Beatriz Milhazes.
“Você compra um Di Cavalcanti da década de 50 por R$ 150 mil. Não podemos nos esquecer de que é o mercado de um país pobre em que não existe a cultura das artes plásticas. Tanto que mesmo um Di por R$ 150 mil pode não ser vendido. Quem diz que o mercado está aquecido é a imprensa, é o promotor do leilão”, afirma Szaniecki.
Os jovens galeristas discordam. Ricardo Trevisan, da Casa Triângulo, que trabalha com artistas de 25 a 50 anos, não reclama dos negócios. “Não dá é para ficar olhando para trás. E tem de ir para o mercado internacional. Se você trabalha com um artista emergente, você cresce com ele.” Na Casa Triângulo, há desde gravuras a R$ 500 até instalações de Sandra Cinto (1968), avaliadas em US$ 30 mil.
De preço em preço, fica claro que a discussão sobre artes plásticas – como de resto sobre várias áreas de cultura – é, sobretudo, uma discussão sobre números. E, como contra a hegemonia quase ninguém está disposto a remar, a caixa-d’água é o Brecheret destes anos 2000. Na lógica do mercado, a capacidade de criar beleza parece não mais contar.

O guardião da arte, por Marcelo Marthe

O mais famoso especialista no assunto fala por que será sempre essencial voltar os olhos para os mestres do passado

O australiano Robert Hughes, de 68 anos, é o mais conhecido crí­tico de arte vivo. Por três déca­das, ele foi editor da revista americana Time. Dono de um estilo tão erudito quanto implacável, produziu ensaios brilhantes e também ficou famoso por destruir reputações. Entre o fim dos anos 90 e o início desta década, ele vi­veu um inferno pessoal. Em 1999, quase perdeu a vida numa colisão de carro em seu país. Além de enfrentar mais de vinte cirurgias e ficar três se­manas em coma, Hughes se viu às vol­tas com um processo sob a acusação de dirigir perigosamente. Foi absolvido, mas voltou à mira da Justiça aus­traliana por desancar os promotores do caso. Em 2001, outro baque: seu único filho, de 34 anos, cometeu suicídio. Recentemente, ele lançou o primeiro volume de suas memórias. E acaba de sair no Brasil, pela editora Companhia das Letras, o estudo que lançou em 2003 sobre o espanhol Francisco Goya (1746-1828). De Nova York, onde vive com a mulher, a pintora Doris Dow­nes, Hughes concedeu uma entrevista em que exalta os mestres do passado, condena o mercado de arte de hoje e fala sobre seu acidente.

Veja - O senhor escreveu sobre assun­tos tão variados quanto a arquitetura de Barcelona e a história da Austrália, mas o único artista ao qual devotou um livro individualmente foi Goya. Por que ele é tão especial?
Hughes - Como todo grande artista, o primeiro dado essencial sobre Goya é que sua obra extrapola seu tempo. Por meio de sua trajetória e de suas idéias, pode-se entender melhor a história da Espanha e da Europa. Mas não só. Mais que qualquer outro pintor, Goya nos permite obter um conhecimento profundo da natureza dos sentimentos e da idéia de justiça, assim como de seus reversos, a injustiça e a crueldade. Nós vivemos num mundo de ironias ex­tremas e de paixões e agressões tão de­satinadas quanto às de que trata Goya. A loucura de que ele nos fala é uni­versal e atemporal. Apesar de repre­sentar tanto para a arte, ainda faltava um livro que o alçasse à sua devida dimensão. Julguei que era uma tarefa importante fazê-lo.

Veja - O senhor concebeu a obra quando se recuperava de um acidente de carro quase fatal que sofreu em seu país, a Austrália. De que forma isso o influenciou?
Hughes - Volta e meia, sou acometido por vívidas recordações daquilo que se passou em minha cabeça naqueles dias difíceis. Tive alucinações e sonhos ab­surdos. Se fosse um pintor; certamente teria vasto material para me inspirar. Eu renasci depois do acidente. Ele me levou a conhecer a experiência da dor. E também a sentir o medo da morte como algo concreto. Isso tudo sem dúvida se refletiu no livro. Hoje, acredito que um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não es­tou dizendo, é óbvio, que seja necessá­rio quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso cer­tamente facilitou a apreciação da maté­ria-prima de sua obra, o sofrimento.

Veja - Em seu recém-publicado volume de memórias, o senhor conta como uma viagem a Florença durante a enchente que destruiu boa parte da cidade italia­na e de seus tesouros, em 1966, fixou sua crença no valor do passado para a arte. Por que chegou a essa conclusão?
Hughes - Em Florença, vivi a expe­riência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tra­gédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituí­vel. Não apenas porque não se pode­riam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes vi­suais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a idéia de que a arte atual possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte con­temporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX.


Veja - Como as pessoas podem se re­lacionar com a obra dos grandes pin­tores do passado?
Hughes - Olhando para o que eles pro­duziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composi­ções musicais do passado. Como o ho­mem atual pode se relacionar com Cer­vantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma his­tória contemporânea em qualquer tem­po e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse ape­lo intuitivo que ela nos arrebata e con­duz, no fim das contas, a um conheci­mento mais profundo de nossa natureza.

Veja - Qual o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa?
Hughes - Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu ca­ráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou um papel fundamental em minha vida, na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo.

Veja - Certas correntes do modernis­mo difundiram a idéia de que o passa­do é um peso do qual a arte precisa se livrar. O que o senhor pensa disso?
Hughes - A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de pri­meira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas ita­lianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado - como se fosse possível apa­gar sua influência apenas com sua ex­tinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no sé­culo XX se baseou no passado. Os mo­dernistas que realmente importam, co­mo Matisse e Picasso, nunca se pauta­ram por sua rejeição. Muito pelo con­trário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renas­cença e do século XVIII.

Veja - O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele?
Hughes - Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até pro­duziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dú­vida de que é a reputação mais ridicu­lamente superestimada do século XX.

Veja - E quanto ao francês Marcel Duchamp?
Hughes - Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primei­ro artista em minha lista dos mais im­portantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoal­mente, prefiro um pintor como o fran­cês Pierre Bonnard. Muita gente consi­dera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um tra­balho de Duchamp. Além disso, a in­fluência de Duchamp sobre a arte con­temporânea foi liberadora, mas tam­bém catastrófica.

Veja - Por quê?
Hughes - Porque ser o pai dessa boba­gem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para com­preender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras to­las em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos in­fantis. Ou precisa ler uma bula para en­tender o que o artista quis dizer.

Veja - Nos Últimos anos, obras de grandes artistas atingiram preços as­tronômicos em leilões. O que explica que se paguem 104 milhões de dólares por uma tela de Picasso?
Hughes - Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de al­gum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um qua­dro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.

Veja - Não há arte que valha tanto assim?
Hughes - Para mim, nem a maior obra-­prima. A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e cole­cionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou ten­dência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas ve­zes dificulta que um dia o grande públi­co possa contemplá-las em museus.

Veja - Nas últimas décadas, o inte­resse pelas artes plásticas parece ter diminuído - desde sua saída da Time, por exemplo, a revista não tem dado o mesmo destaque ao tema. A arte per­deu sua centralidade?
Hughes – É triste, mas o fato de as pessoas terem obsessão pelos altos preços pagos por quadros famosos não significa que elas queiram saber a1go mais sobre arte em si. Ela passou a ser vista apenas como um item a mais no cardápio do entretenimento, como as atrações do cinema e da TV. E também a ser avaliada com base nos mesmos parâmetros. Fala-se de um artista não por sua relevância, e sim pelo valor que suas obras atingem - como se fosse o orçamento milionário de um filme. Ou então por sua popularidade - como se fosse o índice de audiência de um programa. É uma visão distorcida.

Veja - Em suas memórias, o senhor comenta que os 3 200 dólares atingi­dos por um trabalho de Robert Raus­chenberg nos anos 60 não dariam pa­ra pagar dois drinques de Damien Hirst. o mais incensado artista inglês atual. A arte contemporânea está supervalorizada?
Hughes - É claro que sim. Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst - que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista co­mo Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.

Veja – O que o senhor pensa desse esforço dos curadores de museus para transformar as exposições em entretenimento para as massas?
Hughes - Não sou contra o entretenimento, em princípio. Só penso que não é função do museu preocupar-se em produzir eventos com esse fim. Há mostras maravilhosas que calham de ser realmente populares. Só que pode haver outras também maravilhosas,
mas que não têm tanto apelo - e é saudável que os museus continuem lhes dando espaço. É impossível deter­minar a qualidade de uma exposição em função de seu sucesso de público.

Veja - Para alguns especialistas, eventos como as bienais de São Paulo e Veneza tornaram-se obsoletas. O Se­nhor concorda?
Hughes - Não ligo a mínima para bie­nais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância ape­nas para os negociantes de arte. Por bai­xo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.

Veja - Países relativamente novos como o Brasil e a Austrália estão destinados a ter sempre um papel secundário na arte?
Hughes – Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença pró­xima do zero na arte mundial enquan­to qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para in­flar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome­se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é ape­nas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores no­vos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não pas­sam de idiotas e vítimas da moda.

Veja - Antes de se tornar um crítico, o senhor atuou como cartunista e tam­bém pintava. Há alguma verdade no velho clichê de que todo crítico é um artista frustrado?
Hughes - Absolutamente nenhuma. Eu me considero um artista completo, nem um pouco frustrado. Minha arte é escrever. Nunca tive inveja dos artistas nem escrevi nada com o intuito de me vingar deles.

Veja - O senhor coleciona arte?
Hughes - Não, por incrível que pareça. Tenho algumas gravuras de Goya que adquiri ainda na juventude e também telas de minha mulher, Doris. Mas nun­ca fui um colecionador. E vou lhe dizer por quê: logo descobri que, como críti­co, isso não seria ético.
Entrevista: Robert Hughes (Revista Veja, 25 de abril de 2007)

A ditadura dos curadores: críticos tomam o lugar dos artistas e brilham mais do que nunca na Bienal de Veneza, por Luís A.Giron

É comum dizer que a arte fica e o homem desaparece. No caso da 50a Bienal de Veneza, a frase feita virou motivo de graça entre os que a visitam. Os artistas compareceram em peso à abertura, em 14 de junho, desse que é o maior acontecimento de arte do mundo. Mas, passadas as famosas festas de inauguração, nem um dos 380 artistas participantes restou para contar história. Permanecem as obras, embora boa parte deva sumir no fim do evento, em novembro. Algumas já têm até suas idéias e seus materiais derretidos ao sol do verão. A maioria vem com explicações que não pertencem aos artistas, mas aos organizadores das exposições. Toda arte aqui está legendada. O resultado é que o público se sente desamparado porque pouco entende do que vê sem recorrer às legendas. Ironicamente, o título da edição que festeja o centenário da Bienal é Sonhos e Conflitos - A Ditadura do Espectador. Só se o espectador em questão for um sujeito privilegiado, que faça parte do círculo do curador-chefe, Francesco Bonami.
'Caducou a idéia da grande mostra, sob o comando de um curador', diz Bonami, um inquieto crítico florentino de 48 anos que mora em Nova York. 'Por isso, optei por chamar outros nove curadores e dar várias vozes a um mesmo corpo.' Ele montou com seus colegas uma Bienal multiuso. Os inimigos têm atacado seu projeto como o mais inofensivo dos últimos tempos por causa do clima de 'vale-tudo' que transpira. O fato é que os artistas saíram de cena e foram substituídos pela oligarquia de organizadores que desfila pelas instalações. São eles, e não o espectador comum, que exercem a alegre ditadura sobre a arte.

Há quem diga que tal regime é essencial para a sobrevivência do mundo da arte. Como ninguém compreende mais o que ela quer dizer - nem os que a produzem -, é necessário convocar curadores para lhe arranjar sentido. São críticos que se enxergam como príncipes da estética. Depois de terem exaltado os pintores destituídos de pincéis e anunciado a inexistência de autores, os novos heróis jactam-se de ir além e assumir que são artistas, embora desprovidos de obras. Gestores da imaginação, eles se apossam dos trabalhos dos outros para montar conjuntos brilhantes e controversos. Recorrem ao seguinte expediente: se não é mais possível expor simplesmente obras de arte, que se exiba no lugar delas a crise das obras de arte. Até isso já foi usado, só que não de forma tão insidiosa como a plêiade de Bonami. Ela parte da constatação de que a arte se pergunta para onde vai há 100 anos, provou de tudo e segue em movimento, ainda que aos círculos e às cegas. Organizar a ressaca do século XX e indicar o rumo para os futuros criadores é sua pretensão. Não é pouca. E eles só não atingem a meta porque curador jamais saiu ileso da empreitada.
O evento se distribui por três espaços. No suntuoso Museo Correr da Praça São Marcos, acontece a retrospectiva Pittura/Painting: de Rauschenberg a Murakami, 1964-2003. Trata-se da seção histórica gerida por Bonami, excelente e idiossincrática, tomada de visão dos últimos 40 anos da crise da pintura, período em que ela se expandiu até trocar os instrumentos tradicionais pelas novas tecnologias. Reúne a produção de 50 pintores e 56 'pinturas'. Elas traçam um arco da pop art, do americano Robert Rauschenberg, de 78 anos, consagrado na Bienal de 1964 com suas telas com técnica mista, à assimilação irônica da mídia por artistas como o japonês Takashi Murakami, de 40 anos, o ídolo desta edição, com seus painéis cintilantes que lembram mangás e animes, exibidos em vários espaços. A mostra tem co-produção da paulistana BrasilConnects, que tem produzido mostras importantes nos últimos quatro anos. 'Pela primeira vez, uma entidade brasileira integra a Bienal de Veneza com o objetivo de trazer a mostra ao Brasil', vibra Emílio Kalil, diretor da instituição. Ele anuncia que De Rauschenberg a Murakami será aberta na Oca do Parque do Ibirapuera no dia do aniversário de 450 anos de São Paulo, em 25 de janeiro, e se encerrará em março. Murakami foi convidado a vir ao Brasil com Bonami para inaugurar a exposição.
Um parque na área leste de Veneza, os Giardini, abriga os pavilhões nacionais. São 64 participações, além dos projetos La Zona/The Zone, com jovens artistas italianos, e Atrasos e Revoluções, de elenco variado - ambos montados pela turma de curadores. Para os especialistas, ali está o melhor da Bienal. O pavilhão que mais atrai público é o de Israel, com videoinstalações de Michal Rovner, de 46 anos, atuante em Nova York. Ele projeta sombras virtuais que representam multidões. Os hieróglifos humanos dançam, chocam-se e se reproduzem nas paredes e em cubas que remetem a testes clínicos. É uma reflexão sobre o destino caótico das massas. O Brasil recebe elogios por causa de duas cariocas de 40 anos: Rosângela Rennó, com suas soturnas fotos laminadas sobre PVC, e Beatriz Milhazes, que apresenta miragens florais do paraíso em acrílico sobre tela. Há bobagens como o pavilhão espanhol, com uma 'instalação' de Santiago Serra, de 36 anos. O visitante é proibido de entrar no edifício caso não possua visto espanhol. Quando reclama aos monitores, eles explicam que é arte conceitual. 'A obra é você se sentir excluído.' Situações ridículas misturam-se a trabalhos bonitos e comportados.
O coração ousado dos curadores palpita mesmo no Arsenale, vasto complexo de galpões que sediaram o arsenal da marinha da Sereníssima República. Ali se enfileiram oito módulos prospectivos, com títulos antenados: Clandestinos, Linhas Difusas, Sistemas Individuais, Zona de Urgência, A Estrutura da Sobrevivência, Representações Árabes Contemporâneas, Cotidiano Alterado e Estação Utopia. Há um pouco de qualquer coisa, da videoinstalação do chinês Chen Shaoxiong a telas, esculturas e mensagens políticas. Os curadores atestam que a arte não morreu, resiste a trilhar desvios e se fortalece quanto mais é atacada. Clandestinos, periféricos ou tecnológicos, argumentam, todos buscam se expressar ocupando desvãos. 'São gases que se dispersam em ambiente aberto', diz Hans Obrist, da Estação Utopia. Violência e protesto aparecem no Arsenale e fazem com que algumas publicações definam o evento como 'a Bienal da violência'. Bonami defende-se: a violência surge entre os demais traços da vida atual, como pressa, mudança do estatuto da cidade e consumismo. Na verdade, cenas chocantes ou cômicas quase não fazem efeito: uma macaca mecânica fala 'utopia', instalações pornôs, cantora que entoa três notas agudas para irritar o espectador. Impacto que é bom, nenhum.
A corte de curadores talvez não tenha atingido o objetivo. Um evento desse porte serve mais para evidenciar o estado das coisas que para pavimentar caminhos. Nesse ponto a Bienal funciona. Em arte, como em tudo, variedade e mediocridade convivem com poucas idéias. E arte, como diria Leonardo da Vinci, é antes de tudo 'una cosa mentale', sem importar técnica ou suporte. Daí os críticos se acharem no direito de soprar conceitos nas obras alheias. Mesmo porque não há um único artista para reclamar.

UM URINOL FAZ 90 ANOS*, Affonso Romano de Sant'Anna


Você sabia que o urinol que Marcel Duchamp mandou para o Salão dos Independentes, em Nova York(1917), está completando 70 anos e foi eleito a obra mais importante que tudo o que se produziu em artes plásticas no século XX?
Você sabia que, na verdade, o urinol de parede, que Duchamp intitulou de “Fonte” e assinou como sendo de R. Mutt, produzido pela J. L. Motta Iron Works Company, nem chegou a ser exibido naquele salão, porque foi censurado e a peça original, relegada, desapareceu.
Você sabia que a obra considerada fundadora da contemporaneidade, portanto, não existiu, foi uma simples idéia e que permaneceu “in absentia” até os anos 1940, quando Duchamp começou a fazer réplicas dela para vários museus, e que, em 1990, a Tate Galery pagou um milhão de libras por uma dessas cópias?
Você sabia que a polêmica fomentada na ocasião pelos jornais de Nova York foi organizada pelo próprio Duchamp, sua amante Beatrice Wood e pelo seu marchand Arensberger?
Você sabia que embora Duchamp dissesse que o urinol era apenas um urinol, um objeto deslocado de suas funções, alguns críticos, como George Dickie, começaram a ver nessa porcelana as mesmas virtudes plásticas das obras de Brancusi?
Você sabia que outros críticos, -já que o urinol havia desaparecido, começaram a ver na fotografia do mesmo feita por Stieglitz uma referência à deusa Vênus, que surgiu das águas?
Você sabia que outros críticos considerando bem a fotografia do urinol concluíram que ali estava projetada a efígie de Nossa Senhora?
Você sabia que a mulher do músico de vanguarda Eduardo Varese sustentava que o urinol era a reprudução da imagem de Buda?
Você sabia que Duchamp, embora dissesse que o artista não deve se repetir, mandou fazer várias réplicas desse urinol para vender para museus, e confeccionou uma caixa portátil com miniaturas de suas obras para vender também para museus e colecionadores?
Você sabia que o homem que dizia que a pintura estava morta era marchand e vendia quadros e esculturas de seu colegas?
Você sabia que em 1993, numa exposição em Nîmes, o artista francês Pierre Pinnocelli se aproximou de um dos urinóis de Duchamp e decidiu se “apropriar” da obra, primeiro urinando nela e dizendo que o fato de ter urinado nela a obra de Duchamp agora lhe pertencia?
Você sabia que depois de ter urinado no urinol, Pinnocelli, pegou um martelo e quebrou a obra de Duchamp com o argumento de que agora a obra era dele, ele havia se “apropriado” conceitualmente dela.
Você sabia que ele foi processado pelo estado francês que lhe exigiu uma hipoteca de 300.000 francos e que a questão deixou de ser estética para ser policial e até o Ministro da Justiça e da Cultura na França tiveram que opinar?
Você sabia que o mesmo Pinnocelli em 2005, obcecado pelo urinol, insistindo que o urinol é de quem “intervem” nele, atacou a marteladas a cópia dessa obra no Beaubourg, em Paris, o que provocou novos problemas com a polícia?
Você sabia que esse urinol comprado originalmente em loja de ferragens, com a assinatura de Duchamp vale hoje US$3.6 milhões?
Você sabia que Sherry Levine mandou fazer uma réplica de bronze dourado do urinol entronizando de vez a obra como uma espécie de Mona Lisa de nossa época?
Você sabia que Duchamp dizia que o nome “Mutt” que botou no urinol, como sendo o do pretenso autor( que era ele mesmo) era uma homenagem aos personagens em quadrinho- Mutt e Jeff?
Você sabia que mesmo assim Jean Clair- considerado o maior critico francês da atualidade-, prefere entender que “Mutt” remete para uma gíria em inglês significando “imbecil” e que o pseudônimo “R. Mutt” lembra “armut, que em alemão significa “indigência”, “penúria”?
Você sabia que Calvin Tomkins-o biógrafo de Duchamp acha que aquele urinol é a imagem que Duchamp tinha da mulher como receptáculo do líquido masculino, em consonância com os futuristas italianos que diziam que a mulher era um “urinol de carne”?

* Cronica no Estado de Minas/ Correio Braziliense, 7.10.2007

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

PEQUENA SABATINA AO ARTISTA, por Fabrício Brandão

Antes de tudo ser firmado em concretude, a sombra inconteste dos hiatos parece permear a fonte inalienável de nossas existências. Qual seria então o significado mais adequado para a definição crucial dos verdadeiros intervalos a que estamos submetidos? Se falamos em arte nas suas mais variadas acepções, invariavelmente miramos a vastidão de um deserto que separa pensamento e materialidade encerrados numa obra. O lapso das criações pode representar muito mais do que uma mera atitude reflexiva ou contemplativa. Há algo indo além de terapêuticas doses de subjetividade. Ao olhar sensível do criador vem se somar a propriedade emanada dos subsídios da pesquisa e do aprendizado constante, tudo a serviço de uma varredura permanente da alma humana, pedra fundamental da criação.
Certamente, apazigua espíritos mais céticos o fato de poder testemunhar a presença vigorosa de um artista como Maurício Takiguthi. Engajado numa trajetória que privilegia técnica, estudo e apreensões intimistas de nossas humanas idades, Maurício mergulha fundo rumo à captura minuciosa de um realismo que não assume a perversa condição de ser gratuitamente idêntico ao tudo que se vê no banquete ofertado pelo mundo. Mostrando que é possível retirar singularidades de cada gesto expressado, o artista nos conduz com maestria pelos labirintos do ser. Sob a forma de telas ou desenhos, somos arrebatados para uma espécie de clamor inerente à sina do homem. Dono de uma carreira que agrega exposições e prêmios nacionais e internacionais, Maurício expõe algumas de suas opiniões num lúcido diálogo conosco, revelando suas posições em torno do seu processo criativo e das perspectivas conceituais da arte.

DA - Você é um daqueles que não concebe o artista como um ser divinizado, afeito, portanto, a lampejos meramente derivados de inspirações casuais. O que deve conduzir um processo criativo para que ele ganhe essencial sentido e possa construir uma obra sólida?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Creio que o domínio no mais alto nível do processo criativo vem com o estabelecimento de uma sistemática que permita a análise compreensiva da prática, que conecte o pensar ao fazer artístico. Isso implica a necessidade de dissociar a visão do leigo como base da atividade que em tese reivindicaria o olhar do especialista, do técnico.
Infelizmente, predomina, nos dias atuais, a conduta de senso comum, bem diletante, caracterizada basicamente por dois tipos de concepção: do artista como portador na terra do dom divino (e da mensagem de Deus nos casos mais extremos) ou do artista como aquele transgressor excêntrico que entretém a platéia. No primeiro caso, o artista, objeto da ação divina, expressa uma verdade que se encontra pronta e que lhe cabe apenas revelá-la. Contra ela nada pode fazer. No segundo, a teoria é a de que o caminho para a arte profunda e expressiva brota naturalmente do espírito humano e qualquer influência de fora (também conhecida como conhecimento) iria, de alguma forma, contaminar a pureza do processo interior.
Em ambos os casos, a criação torna-se fruto e revelação de um processo místico (instintivo ou divino), inexplicável, acidental. O artista é situado como objeto, à mercê de limites predeterminados, que aceitou esse lugar socialmente convencionado, e que mal consegue perceber. Implicitamente o que se defende é que todo o corpo de conhecimento, constituído no passado, de natureza prática como sistemas de construção, e de natureza conceitual, como os princípios técnicos, deve ser desprezado. Não há lugar para estudo, treino, formação. Não há escolha nem entendimento. Foram extirpados o conhecimento de causa, excelência e domínio técnico, adquiridos através da prática árdua, como valores intrínsecos da prática artística. Parece absurdo, mas o que por fim se instaurou dentro da arte foi a aversão ao aprendizado ou qualquer tentativa de compreender o processo, numa situação parecida com a do poeta que não quer saber das regras fundamentais da língua. Mas como criar sem saber o que se está fazendo?
Obras-primas resultam de grandes respostas para grandes problemas técnicos e estéticos, que expressam simultaneamente questões existenciais do artista. Grandes artistas possuem a capacidade de organizar mentalmente o processo prático, de pensar, ordenar o que vêem, de estabelecer uma interação sensível e intuitiva com o que fazem, sem perder o controle. A boa condução do processo criativo passa pela recuperação do artista como sujeito da ação, encarar a arte como construção, pela manipulação hábil da imagem até que ela possa traduzir com veracidade suas intenções, carregadas de valor e sentido. Controlar é saber o que se está fazendo, dentro de uma estrutura complexa, mental e prática, que comporte conhecimento, técnica e sensibilidade.

DA - Seu trabalho consegue aliar domínio técnico a precisos recortes que permeiam a condição humana. Como é que se deu a predileção pela via realista em seu ofício?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Aos 13 anos de idade, tive o meu primeiro contato com a pintura figurativa tradicional. O que me fascinou neste primeiro instante foi a mágica de transformar meus desenhos antes “chapados” em figuras que pareciam “vivas”, pela recriação das formas mais realísticas e da ilusão tridimensional numa superfície plana, através do sombreamento. Foi a fase da descoberta das belas artes, do desenho acadêmico, da técnica e de que era capaz de representar satisfatoriamente os elementos do real. Minha preocupação limitava-se à abordagem naturalista, mais literal, ou seja, ocupada com a imitação convincente das coisas como elas se apresentavam. Mas percebi, com o tempo, que o prazer de reproduzir o que via tornou-se um trabalho artesanal, repetitivo e vazio. Esgotada a fórmula, senti que precisava de algo mais, mas não sabia explicar.
O que mudou minha perspectiva foi o contato, anos mais tarde, com os mestres americanos realistas contemporâneos através de livros. Viam a pintura como forma de pensamento (ou “coisa mental”, nas palavras de Leonardo da Vinci) e de autoexpressão. De alguma forma, senti que aí existia uma pista que explicava aquela sensação de que o mundo era muito maior do que eu supunha. A partir desta constatação, dois modelos ficaram bem evidenciados: o do pintor que expressava exclusivamente as coisas e do artista que se expressava através das coisas.
Houve uma transição silenciosa importante: a pintura elevou-se àquela categoria de pensamento visual e forma de linguagem, em oposição à mera reprodução mecânica do que eu via, que, em última instância, prescindia de subjetividade, sem qualquer tipo de reflexão mais elaborada. A pintura realista foi se tornando, ao longo dos anos de treinamento, sem perceber, metáfora de mim mesmo, através da qual entendo, penso e me relaciono com o mundo. A figura humana configurou-se como veículo principal pelo qual consigo expressar minhas verdades. Passei a usar as pessoas retratadas como modelos que emprestavam seus corpos para expressar emoções, percepções e concepções que eram minhas. Mais tarde ficou claro que a vontade de explorar temas como intimismo, solidão, angústia, vivência, momentos de reflexão sobre antagonismos da vida cotidiana, revelava mais sobre mim do que conseguia expressar por palavras. O meu estranhamento diante das coisas e das pessoas servia de base para a exploração de novas possibilidades de olhar a pintura e a mim mesmo. A mágica está em tornar visível, “palpável”, essa interação sensível entre a realidade interna e externa. O realismo é o modo como consigo exteriorizar e materializar sensações ou estados de espírito.

DA - Falando das densidades e mistérios humanos, há em você uma busca obstinada por uma forma que melhor traduza tais sentimentos?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Sim, e essa forma resulta do encontro do sutil com o essencial. Na minha atual fase de pesquisa, quero explorar a desconfiança de que o essencial encontra-se nas camadas mais profundas e silenciosas da imagem e, para atingi-lo, quero ser capaz de ter acesso ao sutil, que implica ver grandes diferenças nas pequenas coisas.
O treino, nada fácil, é amplificar a sensibilidade intuitiva que consiste basicamente na tarefa de estar mais atento ao que acontece à minha frente, ou seja, tentar mais ouvir do que falar. Estar aberto, suscetível, manter a mente livre de pré-julgamentos visuais para poder ver com clareza as reconfigurações de acordo com as mais leves mudanças idiossincráticas e contextuais.
Extrair as formas mais sutis e essenciais é extrair as sensações indizíveis que se encontram na camada mais profunda e escondida nas especificidades do real. As sobreposições de camadas podem adquirir qualidades que aprofundam o olhar sobre aquilo que se vê – as camadas tornam-se camadas de acesso, de contemplação e de entendimento.

DA - Uma das características mais fascinantes da arte é a capacidade de transcendência que ela exerce sobre as coisas que ousamos transformar a partir do olhar. Seria essa uma via de cura para nossos equívocos?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Acredito, sim, que seja uma via possível de cura, dependendo muito de alguns fatores, principalmente para aqueles que conseguem perceber a analogia possível entre vida e arte. Para quem se coloca na arte como na vida, precisa estar predisposto a vencer um duplo desafio: a resistência individual (nem todos estão dispostos a assumir ou reconhecer os próprios enganos) e superar as forças contrárias do meio (afinal, os tempos pós-modernos não ajudam, seja pelo excesso de racionalização em detrimento dessa capacidade sensível de atentar para as coisas, seja pela possibilidade irresistível de substituir a ausência de domínio da prática pela retórica). Em ambos os casos, aceitar uma mudança radical de postura para levar adiante este desafio de transformação, exige disciplina, sinceridade, justeza no julgamento, humildade e maturidade.
Um dos aspectos mais interessantes e, ao mesmo tempo, doloroso é a capacidade de se ver através do processo prático. Nele, os vícios, as faltas, as imperfeições ficam estancados na obra. A conta se contrabalança também pela presença das qualidades e dos indícios de que é possível melhorar. A natureza da atividade muda efetivamente quando se transforma em busca permanente de aperfeiçoamento, principalmente o da mente. O movimento consiste em tentar entender, aprofundar a visão do que acontece tanto pela leitura de si mesmo quanto da obra, pois ambos se explicam. Para poder evoluir - isso é o que aprendi com “muita chibatada da prática” (e depois de tentar muitas outras soluções que não deram certo) - é preciso humanizar-se e aceitar tudo o que vem no “pacote”: admitir os limites, os apegos, os vícios, as inseguranças e as incertezas da mesma forma como se aceitaria de bom grado as virtudes. A ambição de querer ser um bom pintor me obrigou a adotar certos valores como postura correta, flexibilidade e disciplina, mesmo quando sentia preguiça, raiva e vontade de rasgar as telas.
Por último, acho que um dos melhores ingredientes para lidar com os nossos equívocos sob o prisma do aperfeiçoamento é a prática da coerência, ou seja, tentativa de diminuir a distância entre o que se diz ou pensa e o que faz. Dessa forma, a Arte, pode transformar-se em busca de si mesmo e a expressão dessa busca. E isso não se esgota.


DA- Como é que você avalia o atual panorama da arte brasileira?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Se estávamos falando da arte como campo possível de humanização, o panorama atual prima por essa ausência. Por mais que se diga ou se pregue a arte como campo de deleite estético, de criação, de interação sensível do público com a obra, isso já deixou de existir há muito tempo, desde a instituição da transgressão como critério de validade artística. Desenvolveu-se um sistema permissivo que tem a liberdade como possibilidade de fazer qualquer coisa, sem critério, que, em última instância, desembocou na anarquia (ou ditadura?). A transgressão no passado, que nasceu como fator de diferenciação e de identidade, foi assimilada e incorporada pela sociedade na forma de mercado. O grande atributo artístico passou a ser a novidade, o excêntrico, o bizarro e neste mundo ultra massificado são ouvidos os que gritam ou praticam o escândalo como estilo de vida. A arte virou entretenimento que nos distrai sedutoramente com argumentos racionais. Mas isso, ao longo de décadas, teve um efeito devastador, porque convenceu o espectador a abandonar, anestesiar sua própria intuição e sensibilidade para priorizar exclusivamente o seu intelecto e tornar assim a obra inteligível. O mundo artístico tornou-se um grande circo, circo da transgressão, dentro do qual, o artista para poder existir, passou a entreter o outro, com algo de preferência simpático, barulhento ou estranho, mas que definitivamente não toca ou mobiliza o espectador.

DA - Com a banalização de conteúdos trazida à tona em nosso tempo, muitas vezes atribuindo valores a trabalhos artísticos bastante questionáveis, parecemos adentrar numa era de vazio conceitual. Acredita que é possível haver uma retomada de sentidos verdadeiros?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Sinceramente, não sei se é possível retomar esses sentidos. Os processos de racionalização crescente na modernidade que representaram também um enrijecimento da sensibilidade; a desconstrução do sentido; incapacidade de julgamento do homem comum pelo excesso de informações; a transgressão como atributo de validação artística; a concentração de poder nas mãos dos curadores ao se transformarem nos tradutores das obras; a busca obsessiva da “novidade” transformada num valor em si mesmo e o distanciamento do público da arte contemporânea são fatores historicamente construídos que se consolidaram como valor, ideologia e relações de poder, o que torna ainda mais difícil qualquer mudança.
Há também que se resolverem outros problemas estruturais no âmbito prático. A arte contemporânea sustenta-se, direta ou indiretamente, com dinheiro público através das leis de incentivo fiscal, os defensores desse tipo de arte são também os formadores de opinião e como tais tem acesso à mídia e estão no controle das principais instituições de arte. Ditam quem deve entrar ou não na instituição, assim como ditam o rumo das coisas. O público, para o qual deveria em tese destinar as obras, embora peça chave no sistema, é excluído. Acredito que estes fatores são capazes de mudar um pouco esse panorama: o exercício por parte do público do que o Affonso Romano de Sant’Anna chama de cidadania estética, ou seja, o direito de dizer que pensa sobre esta arte que está aí; resgate da importância do público; fim do uso do dinheiro público para financiar a arte contemporânea e discussão dos critérios para uma arte válida (ao invés da eterna discussão sobre os caminhos da arte por parte de quem se beneficia com o sistema).

DA - Ao longo de sua história enquanto artista que prima pelo aprendizado constante, quais experiências demarcaram especiais significados ao seu olhar?
MAURÍCIO TAKIGUTHI - Tive várias experiências interessantes, mas todas elas foram se dando de maneira cotidiana, como um tijolo colocado sobre o outro a cada dia. Por isso, isoladamente elas perdem a força. Posso falar da última, que passei no mês de julho, durante o workshop que fiz nos EUA com Burton Silverman, um dos maiores pintores realistas americanos da atualidade. Antes de viajar, me sentia realmente esgotado, desanimado com a arte aqui no Brasil. Conhecê-lo foi uma honra e a experiência, fantástica. Interessante constatar como, por trás do mestre, há sempre um grande ser humano, generoso, inteligente e sensível. Ver in loco o modo como pinta, sem esboço linear, esculpindo com sobreposição de massas (áreas de cor ou valor), revelou quão destemido e arrojado pode ser um artista. Pude constatar de certa forma, como é possível aliar visão em profundidade, domínio do pensamento, liberdade, sensibilidade e destreza. Foi marcante comprovar que algo deste nível existe e isso me fez sentir renovado no compromisso com o que eu faço.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Entrevista com Ferreira Gullar

O senhor disse durante a palestra que o homem vive no mundo da cul­tura e não no mundo da natureza, que o homem inventa a vida. Como assim?
Pois é, ele se inventa. O homem é uma invenção do homem. Quando nas­cemos, não somos ninguém, não te­mos nome, não sabemos nada. O que a escola nos ensina, o que o bem social nos ensina, o que nossa experiência nos ensina é que faz nos inventarmos como seres humanos. Antes disso, não somos nada. Não significa, no entanto, que nos inventamos a partir do nada. Inventamo-nos a partir de qualidades que já possuímos. Por exemplo, eu não poderia crescer alpinista, pois não te­nho músculo e morro de medo de altu­ra. Em função de alguns elementos, va­mos nos inventando. A civilização egípcia, por exemplo, é inventada sobre determinados valores. Eles ti­nham características que nós já não te­mos, acreditavam em coisas em que já não acreditamos, mas tudo aquilo constituía o mundo e os valores pelos quais eles viveram, lutaram, se apaixo­naram, se mataram. Tudo em função daquilo. A civilização grega já é outra invenção. Não sou a primeira pessoa a dizer que o homem é uma invenção de si próprio. Quando Marx diz que o homem é produto da História, das contradições, de seu trabalho, e afir­ma ainda que Deus não existe, ele es­tá dizendo que o homem é uma inven­ção de si.

Quando Freud estrutura a psicaná­lise, começa a chamar atenção para coisas que as pessoas não perce­biam antes. Ele também estava in­ventando?
Claro. Veja bem, não existem o id, o ego e o superego. Ele inventou uma concepção e organizou a subjetivida­de do homem dentro desses concei­tos. Mas faço questão de dizer que não se trata de uma invenção gratui­ta. A invenção gratuita é do louco. Só que, como ele não parte de elemen­tos objetivos, reais, sua invenção é frágil, não se mantém. E ele sofre ter­rivelmente com isso porque sente que sua invenção não se sustenta e que as outras pessoas não a aceitam porque não há essa relação com o concreto. Para durar, é fundamental que a invenção tenha essa relação com o real. Dependendo de como funciona essa relação, as invenções têm mais ou menos duração.

Onde ficam a poesia e as outras ar­tes dentro dessa concepção?
A arte tem uma função muito im­portante. Por não se basear em ele­mentos conceituais, por ser intuída, imaginada, ela fortalece o vínculo entre o real e o imaginário e a ciên­cia, o imaginário e a filosofia. Dá uma carnadura mais concreta a essa relação porque não é abstrata. É mais afeto, mais emoção. Complementa a filosofia e a ciência para que não haja só teoria ou só prática. O ser humano não é só feito de conceito e de ciên­cia. Essa outra parte é complementa­da pela arte.

O senhor acha que o homem acaba inventando também a sua memória?
Não inventa a memória, mas a transforma em outra coisa. A memó­ria acaba virando vida presente. Dei­xa de ser passado. O homem não quer o passado, e para isso o trans­forma em presente. Picasso diz que a arte é sempre atual. Isso é genial. Cla­ro! Obras de arte te emocionam ago­ra, como emocionaram as pessoas no passado. "A arte só tem de passado o fato de ter sido feita antes. Um dos milagres da arte é fazer com que o passado se torne presente. O passado "passado" é morte. Quando eu pego as bananas da quitanda e as transfor­mo em poesia, estou inserindo-as na nossa vida atual. Elas não pertencem à esfera da quitanda, transformam-se além do tempo.

Durante a palestra o senhor falou da sua viagem feita de São Luís do Maranhão a Teresina, no Piauí, e disse que conheceu Trenzinho Caipira, de Villa Lobos, e tentou colocar a le­tra, mas não conseguiu. Daí, em Buenos Aires, a questão volta ao contrário...
Antes, ao ouvir a música, eu me lembrei da minha infância. Agora, em Buenos Aires, ao falar da minha infância, eu me lembrei da música. Ao ouvir Villa Lobos, automatica­mente remeto à minha infância. Fi­cou dentro de mim. Então, quando eu vou falar de uma, acabo lembran­do da outra.

O senhor diz que a arte tem que emocionar, caso contrário não é ar­te. No entanto, hoje em dia as pes­soas teorizam tanto a arte...
Existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias. Isso não tem cabimento. Para refletir, preciso ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de pintar do Cildo Meirelles para fazer isso. Ele é um excelente pintor, mas por que ele não pinta em vez de fazer o que está fazendo? Co­loca escrito na obra "Urinóis – cocô artificial com planta natural". É para pensarmos sobre isso? O que vamos pensar sobre cocôs e plantas artifi­ciais? Isso é muito pobre. Se ele fi­zesse os guaches que fazia antes, se comunicaria e transmitiria coisas que as pessoas poderiam sentir por meio da arte. Estive agora em Paris e fui ao Museu de Arte Moderna. Só vale pelo acervo de obras realizadas até a dé­cada de 40. Depois disso, nada vale a pena. O museu está vazio, ninguém vai lá. Tinha até uma exposição da Yoko Ono, que só faz besteira tam­bém, mas mesmo assim estava vazio. Só está lá porque ficou famosa de­pois que casou (com o ex-beatle John Lennon). É inacreditável ver os dire­tores do museu convidando esse tipo de gente para expor. O resultado dis­so é que ninguém vai lá ver a exposição. Já o Louvre recebe multi­dões de pessoas, assim como o Mu­seu Picasso.

E quanto aos críticos que escre­vem páginas e páginas sobre essa ar­te conceitual? As vezes, ao terminar­mos de ler uma dessas críticas, nos sentimos péssimos, pois não enten­demos nada.
Nem eles entendem, porque não há o que dizer sobre isso. A Jac Lemer fez uma exposição no Rio de Janeiro com umas maletas de viagem e teve um crítico que citou Heiddeger e Marx para apresentar a exposição. Não tem nada a ver com nada. É um texto indecifrável que, na verdade, não significa nada. O crítico não tem o que dizer e fica inventando. Vai di­zer o quê? Que as maletas estão bem arrumadas no espaço? Realmente não há o que dizer, pois ela nem fez as ma­letas, as comprou prontas. A rigor, não pode haver crítica sobre essa bes­teirada. O difícil é explicar como isso se mantém há décadas. A Bienal de Veneza acabou de ser inaugurada com as mesmas bobagens. Antes de ser aberta ao público, um cara mandou uma proposta de instalação que é um absurdo, e foi obedecida pela direção do evento. A idéia propunha a criação de um muro que fechava a entrada do pavilhão espanhol. Para que a entrada fosse permitida, seria necessária a apresentação do passaporte espa­nhol. Ou seja, ninguém conseguia en­trar. E o incrível é que a Bienal topou isso! Na verdade, o artista estava era fazendo uma grande gozação com a Bienal, gozando a instituição. Essas pessoas são niilistas. Destruíram a ar­te, são pessoas que não têm o que fa­zer na vida e, com razão, gozam uma instituição que quer instituir algo que não existe. Essa instituição tanto vive um impasse que aceita a sugestão de um cara que manda fechar a porta da sua própria exposição. Afinal, se ne­gasse o pedido, ela não seria uma ins­tituição de vanguarda, seria conserva­dora. e como é de vanguarda tem que dizer sim. Só que isso acaba com ela. O que acontece então? Acontece que a Bienal praticamente não tem mais expressão alguma. É moribunda, está se autodestruindo. Aceitar esse tipo de coisa é autodestruição.

Por que os críticos têm tanta raiva da pintura no Brasil?
Acho que foi um processo que co­meçou com as vanguardas do início do século XX e cujo elemento princi­pal é a racionalidade se sobrepondo à fantasia e à criatividade. Isso nasce de uma visão equivocada de que a ciência é superior à intuição e à ima­ginação. Trata-se de uma característi­ca moderna. A ciência é produto da nova idade, logo, tudo o mais é pas­sado e retrógrado. Emoção e intui­ção são velharias. Só que, ao fazer is­so, a arte caminhou para a autodes­truição, pois a imaginação é a maté­ria-prima da arte. Por isso a arte plás­tica acabou, pela exclusão desses ele­mentos. A poesia, o cinema, o teatro e a música não acabaram. A literatu­ra não acabou porque não seguiu Finnegans Wake, senão teria acaba­do. Que romance teria sido escrito se a partir de Finnegans Wake fosse feito como se fez nas artes plásticas, em que Duchamp declarou "daqui não se volta, vamos adiante?" Sim­plesmente não haveria toda a obra de Jorge Luis Borges, de Julio Cortá­zar, de Gabriel Garcia Márquez, de Hemingway... Não haveria os roman­ces modernos italianos, ingleses, franceses, Guimarães Rosa ou Graci­liano Ramos. Vanguarda houve em todas as áreas das artes. Cheguei a ouvir concerto aqui em São Pauto que era uma enceradeira e um liqui­dificador. Mas não preponderou. O Único setor que seguiu isso foram as artes plásticas. É um enigma, não sei explicar o motivo. Além de tudo, ain­da se conta com uma instituição como a Bienal que mantém e financia isso. As exposições estão desertas. Só vão crianças, que são levadas compulsoriamente. A última Bienal foi um fracasso. Todos os vídeos eram chatérrimos e cheios de boba­gens. Em Paris, assisti recentemente a um vídeo que só mostrava um cara berrando sem parar. Interna esse ca­ra! Vídeo bom é aquele que narra al­guma coisa.

"Arte e pensamento estão num beco sem saída", por Arnaldo Jabor

O que foi que nos aconteceu? Hoje as antigas palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas de sentido e ficamos à deriva. Por exemplo: “futuro”. Antes, era um lugar a que chegaríamos, um lugar no espaço-tempo que nos redimiria de sofrimentos, linha de chegada da esperança. Agora, vivemos diante de um futuro que não chega e de um presente que nos foge sem parar. Isso nos faz saudosos do presente como se ele fosse um passado. Se tínhamos conceitos e até deliciosos dogmas para explicar o mundo, agora só temos uma leve vertigem permanente de que o “tempo não pára e de que as idéias não correspondem mais aos fatos”, como cantou Cazuza. Isto está virando um bordão filosófico, mas vamos lá...

No Brasil, vivemos a angústia do provisório. “Ah... os juros vão cair quando fizermos as reformas, depois que o Estado se enxugar!...” Mas... quando isso virá? Ninguém sabe, pois não há ideologias administrativas claras e isso nos danifica o presente e desmoraliza o futuro. O campo está aberto para loucuras populistas, para radicalismos burros, como vemos na América Latina, onde a democracia vai caindo em descrédito, com provocadores boçais como Hugo Chavez, incensado por idiotas terceiro-mundistas. Intelectuais e artistas vivem em pânico, pois seu reinado de sínteses se extinguiu. Os acontecimentos vão ficando incompreensíveis, impalpáveis. Hoje, no tempo das informações infinitas, na internet, na revolução audiovisual, nada se fecha em conclusões. Pipocam religiões novas e irracionalismos autoritários que nos dêem alguma certeza, nem que seja a do chicote em nossas costas, pedras em nossas cabeças ou guerras sangrentas que nos purifiquem.

Vivemos a dor de uma transição dos tempos do Sentido para uma era indefinível, o que nos dói como uma mudança de pele, sem saber se vamos para uma Renascença ou uma Idade Média. Todas as reflexões filosóficas ficaram céticas, deprimidas, descrevendo impossibilidades e becos sem saída. Nunca imaginávamos que o século XXI seria parecido com o século VII, quando Maomé se declarou o único profeta. Se antes tínhamos grandes narrativas cheias de esperança, hoje só nos resta louvar o fragmentário, deixando o Sentido para as grande corporações; só elas têm uma “racionalidade” fria que permanece. Mesmo no absurdismo dos anos 40-50, havia uma esperança de liberação individual — no existencialismo, no marxismo reformado — mas hoje caímos numa afasia que os pensadores tentam transformar em sabedoria do nada. Seria até um avanço filosófico saber que nunca chegaremos a lugar algum, que a História é assim mesmo, retalhada, fragmentária, que as sínteses morreram... Mas todo mundo quer certezas e assim... choverão fundamentalismos...

Na arte, então, tudo ficou também um bode negro. A destruição que vemos na vida, o império da sordidez mercantil, a ignorância no poder, o fanatismo do terror, a boçalidade da indústria cultural, a destruição ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além de qualquer “denúncia” artística; o mal é tão profundo que denunciá-lo mecanicamente destruindo a própria arte como uma “prova do crime” acaba virando quase uma cumplicidade.

Sobrou para os artistas uma atitude geral masoquista, se mutilando na body art , se furando, querendo recuperar uma importância que tiveram nos tempos do modernismo, nem que seja pela destruição de si mesmos, para evitar o terrível sentimento de que talvez a arte tenha virado mesmo a mera produção de objetos descartáveis, desnecessários. Aceitar o efêmero da arte é vivido como a aceitação da morte. Aceitar apenas a produção de objetos vendáveis para as salas da burguesia é a derrota consumada. A morte da “aura” da arte está mais difícil de aceitar do que se pensava. Assim, o artista se vê como um profeta abandonado, e ele mesmo passou a usar a luz da “aura”, passou a ter “aura”, como um halo, como uma coroa de espinhos para sua solidão. O artista quer virar a obra de arte. E tudo faz para esquecer seu abandono, mesmo que seja expor seus excrementos numa latinha na Bienal de Veneza.

Caiu-me nas mãos uma revista velha com entrevista de Brad Holland, um ensaísta sacana e brilhante. Ele fala da arte de hoje e, de tabela, refere-se ao beco sem saída a que me refiro desde o início deste artigo-cabeça. Diz ele: “Duchamp fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou no fim da vida jogando xadrez como se fosse um objeto artístico. Meu avô também, acabou num urinol, jogando xadrez.(...) Tanto o dadaísmo como o surrealismo estão superados. É impossível distinguir esses movimentos estéticos da vida cotidiana.” Holland também sacaneia o expressionismo abstrato: “As multinacionais não podiam enfeitar seus “halls-Bauhaus” com retratos de palhaços tristes e casinhas de campo. Por isso, o abstracionismo foi inventado”. E depois: “Estamos tentando romper com as normas é, hoje, o slogan do anúncio do McDonald’s”. E a frase suprema: “Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda”.

E, aí, vemos a verdade: a arte contemporânea está muito aquém da realidade. Que performance ou happening será mais contundente ou expressivo que a destruição de Nova York, do WTC? Que cadáver exposto dentro de garrafas ou latinhas de bosta ou tubarões podres ou latas de lixo são mais assustadores que a eternidade da guerra Israel-Árabe ou do inferno do Iraque? Sobrou uma denúncia tola (que aliás absolve gentalha sem talento), muito aquém da complexidade do horror de hoje. E não só na arte — em tudo. Na filosofia, na política, na economia.

É isso aí. Eu ia escrever sobre a entrevista do Lula, mas me deu uma depressão pânica e desisti de criticar o óbvio. Fiquei com saudades da arte, fugi em busca da “beleza” e deu nisso: mais um beco sem saída. Não tem solução; só o cianureto de potássio.

"A cultura como ideologia" por Márcia Denser

Nosso presente histórico é caracterizado pela fusão de cultura e economia (não é uma merda? este não seria o sentido profundo do “fim da arte”?).

A cultura (e a arte) não é mais aquele lugar onde negamos ou nos refugiamos das duras realidades da luta pela sobrevivência, isto é, do capital, mas sua mais evidente expressão. Por exemplo, o século XIX utilizou a beleza como arma política contra o materialismo tacanho da sociedade burguesa, dramatizando seu poder negativo para condenar o comércio e o dinheiro e gerar um desejo por transformações pessoais e sociais no coração de uma sociedade industrial horrível.

A arte era um espaço para se projetar novos e melhores mundos. E só o fato de imaginá-los tornava-os potencialmente possíveis. Por que então hoje não podemos vislumbrar na cultura tais funções políticas genuínas? Por que este vazio, este silêncio, este temor inconfessável, estas más intenções declaradas (ou não), essa atmosfera castradora e broxante no lugar da arte? Por que arte e cultura perderam o velho prestígio que gozavam anteriormente? Por que apenas restaram umas tantas manifestações/ocupações/instalações, o caralho, assépticas, anódinas, estúpidas? E dá pra se fazer algo melhor, ou algo realmente bom, genuíno, poderoso, sei lá, sob o império da grana?

Para Jameson[1], esta é uma questão que nos permite medir a distância entre os efeitos de uma mercantilização incompleta e o comércio visto numa escala global e tecnológica, na qual os últimos esconderijos que restavam – o inconsciente e a natureza, ou a produção cultural e estética e a agricultura – foram assimilados pela produção de mercadorias.

Numa era anterior, a arte era uma região além da mercantilização na qual a liberdade estava disponível, até na Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer ainda havia zonas da arte fora da cultura comercial (que para eles seria essencialmente Hollywood). O que define a cultura (e a arte) atual é a supressão de tudo que esteja fora da cultura comercial (porque fora da cultura comercial nada existe), a absorção de todas as formas de arte, alta e baixa, pelo processo de produção de imagens.

Hoje, a imagem é a mercadoria e é por isso que é inútil esperar dela uma negação da sua lógica de produção. É também por isso que toda beleza hoje é meretrícia e que todo apelo a ela, no pseudo-esteticismo contemporâneo, não é um recurso criativo, mas uma manobra ideológica.

Nesse esquema, que coagiu “o espetáculo como forma de resistência” para transformá-lo “em forma de controle social”, a cultura é o grande negócio, daí que investimentos culturais como shows, exposições, óperas, museus, festivais tornam-se parte vital da terceira geração do imaginário ideológico das chamadas “cidades-globais”.

Do ponto de vista urbanístico – que é onde mais se evidencia o uso da cultura como ideologia –, o livro O Mito da Cidade GlobaI, de João Sette Whitaker Ferreira (Rio, Vozes, 2007), levanta questões importantes, relembrando exemplos paradigmáticos já com três décadas de idade, como a Opera Hall de Sidney, a pirâmide do Louvre e a Ópera da Bastilha em Paris, a nova Tate Gallery e o Pavilhão do Milênio em Londres, o museu Guggenheim de Bilbao; grandes exposições culturais como o Brasil-500 em São Paulo, o bicentenário da Revolução Francesa em Paris, sem contar os jogos olímpicos de Barcelona ou a Copa do Mundo da Alemanha.

E aqui ele chama a atenção para o fato de que em todos esses empreendimentos, o evento (ou o monumento) sempre se torna mais importante do que a produção cultural em si, num espelhamento no campo urbanístico daquilo que se tornou paradigma da economia global: o predomínio absoluto da marca acima até do produto. A pirâmide de Pih no Louvre ficou mais importante que o próprio acervo do museu, aliás, alguém já se preocupou em saber exatamente o que há dentro do Guggenheim de Bilbao para além do projeto de Frank Ghery?

Paralelamente à tendência de obscurecimento ou diluição da arte, dos artistas e das condições concretas da criação, acontece uma dilatação do prestígio dos museus, galerias e curadores. É como se os valores da montagem e da promoção prevalecessem sobre os da imaginação e da expressão artística. Numa cultura de mercado, a vitrine, a embalagem, a grife se tornam a chave de um ato que se caracteriza mais como consumo do que como invenção cultural. Consumo do quê? De nada, além de ideologia.

De forma que hoje a arte já não é espaço utópico, tampouco refúgio ou contestação ou transgressão de coisa alguma. Interpenetrada pela lógica do lucro deixou de ser arte. O que é isso então? Bom, isso que chamamos cultura (ou arte, sei lá) passou a ser o veículo ideológico do Pensamento Único. E já que se trata de ideologia (ou interpretação do real difundida pelo poderoso da vez para continuar no poder) – aliás, mais uma – não é nada irreversível tampouco inexorável.

"A ditadura do relativismo existe?" por Gilberto de Mello Kujawski

Joseph Ratzinger, ainda cardeal, defende a fé católica contra o que chama a “ditadura do relativismo”, exemplificada no marxismo e no liberalismo de livre mercado, no libertarismo, no coletivismo, no ateísmo, na religiosidade vaga, no agnosticismo e no sincretismo. O ilustre historiador Boris Fausto, em artigo na Folha de S. Paulo, contesta a posição de Ratzinger, negando a ameaça de uma ditadura do relativismo: “Na verdade, dentre as ameaças que rondam o mundo atual não se encontra a chamada ‘ditadura do relativismo’.
Encontram-se, sim, as visões fundamentalistas, de métodos e matizes variados, mas com alguns traços essenciais comuns” (A ditadura do relativismo, 12/5). Exemplifica com o “fundamentalismo religioso americano” e o “fundamentalismo islâmico”.
Ora, não é preciso ser sábio para perceber que o fundamentalismo a que se refere o prestigiado professor não passa da reação ao relativismo imperante na História contemporânea, acusado naquelas opções mencionadas pelo então cardeal Ratzinger, o marxismo, o liberalismo de livre mercado (porque há outro liberalismo que não é o de livre mercado), o libertarismo, o coletivismo, as religiões vagas, o sincretismo, etc.
São esses fenômenos que formam o clima cultural em que respiramos e vivemos, em período de tremenda instabilidade de todos os paradigmas, em crise inegável desde o século anterior. Fundamentalismos não passam de reações desastradas à unanimidade do relativismo, cada vez mais generalizado e consolidado. Interessante a distinção entre pluralismo e relativismo, devida a Isaiah Berlin, lembrada no artigo por Fausto.
Em resumo, o pluralismo admite, com direitos iguais, distintas visões da realidade, diferentes formas de pensar, crer, avaliar, viver e agir, todas elas igualmente legítimas. A nosso ver, a diferença, em contraposição ao relativismo, é que o pluralismo argumenta com idéias, crenças e valores inteiros, completos, tomados em sua integridade, ao passo que o relativismo se contenta com visões fragmentárias, meias-verdades, meios-valores, meias-crenças, etc.
Em outras palavras, o pluralismo é uma atitude generosa e tolerante que admite a multiplicidade do real e dos caminhos para chegar a ele por meio das crenças ou das idéias. O relativismo, diversamente, representa o ponto final do ceticismo e do niilismo, essa posição que “considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há qualquer sentido ou utilidade na existência”
Bento XVI não é nem poderia ser antipluralista. Ele prossegue na linha do Concílio Vaticano II, que abraça o ecumenismo religioso, o qual pressupõe o maior respeito às mais diferentes confissões.
A expressão mais completa e acabada do relativismo em nossos dias, sua versão oficial, está no pós-moderno. Em sua investida contra as utopias do iluminismo (razão, ciência, progresso), o pós-modernismo renega todas as utopias sem as quais a cultura não existe: o universal, a totalidade, a verdade, a nação, o Estado, a História e as metas da História.
Joga fora a criança junto com a água do banho. As utopias do iluminismo, na medida em que podem e devem ser superadas, também devem ser virtualmente conservadas. Não se pode condenar o homem a recomeçar sempre do zero.
A noção forte do pós-modernismo é a fragmentariedade, assim como no modernismo era a noção de totalidade. Na visão fragmentária do mundo estão contidas todas as demais categorias do pós-moderno: a anarquia, a dispersão, a indeterminação, a antiforma, a antinarrativa, o inacabamento, a metonímia, a mutação, a esquizofrenia, etc., conforme a tabela comparativa entre modernismo e pós-modernismo elaborada por Hassan (1985).
O fotógrafo “moderno”, ao focalizar uma cidade histórica, Veneza, por exemplo, fixa os grandes conjuntos, como a Praça S. Marcos, a catedral, os canais e as pontes, os velhos edifícios, etc.
O fotógrafo “pós-moderno”, ao contrário, toma somente flashes parciais da cidade e de seu movimento, detalhes nem sempre significativos, não a catedral, mas o rosto pela metade de um turista, não a estátua inteira, mas um detalhe de seus pés, por exemplo, organizando um mosaico estilhaçado do tema, numa visão não integrada, uma mixagem de sintaxe duvidosa.
Ao que parece, o pós-modernismo resulta do excesso de informação que congestiona hoje o conhecimento, corrompendo a integridade do sentido, subvertendo as visões totalizantes, panorâmicas, à distância, pelo registro míope, destorcido e anárquico das coisas.
O excesso de informação, implicando informações contraditórias, dá lugar ao relativismo e suas meias-verdades, meias-visões e meios-valores. Passam-se a admitir direitos iguais, igualmente legítimos, para uma frase de rock e uma ária de Bach, uma página de Shakespeare e uma história em quadrinhos, a missa solene na catedral e o culto do bispo Edir Macedo.
Pois tudo é, mesmo, muito relativo. Estabelece-se o jogo do vale-tudo, que resulta no vale-nada, na soma zero da cultura.
Conclusão inesperada: o pós-moderno deve ser rejeitado em bloco? Será que nele nada se salva? Seu destino inevitável será a lata de lixo? Não é o que pensamos. Uma coisa é o pós-modernismo como doutrina, como tese em polêmica com o modernismo, e outra coisa é sua execução.
Nesta deparamos com achados extraordinários, na fotografia, na pintura, na arquitetura, no cinema, na literatura. Lances pós-modernos constam em autores como Fernando Pessoa, J. L. Borges, Ezra Pound, Carlos Drummond de Andrade e muitos outros.
Certos aspectos mais rígidos e calcificados da cultura iluminista podem receber a oxigenação e a revitalização do pós-moderno. O pós-moderno, expurgado da doença senil do relativismo e do excesso de doutrina, em pequenas doses, pode agir à semelhança das vitaminas no organismo combalido da cultura. Tudo é questão de dose.
O ideal seria combinar o moderno com o pós-moderno. Pois é possível conceber uma grande narrativa feita de pequenas histórias. Não é o caso do próprio Homero?