quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A vanguarda do tédio, por Jorge Coli (Colunista da Folha)

Texto que achei na rede sobre a 27a. Bienal:
Tão perversa é a palavra "crítica". Em velhos tempos, era moda dizer: "É preciso ser crítico". Ter "postu­ra crítica" ou "consciência crí­tica" seria o apogeu de uma ati­tude soberana, capaz de com­preender o mundo para além de suas aparências e, mais ain­da, de transformá-lo.
Hoje, percebe-se facilmente que, engolida assim, "crítica" quer dizer o seu avesso. Basta invocá-la como um abracada­bra e pronto: o pensamento se satisfaz na superioridade. Que imagina ter encontrado. Substitui o desconforto do exame e da dúvida pela certeza cômoda das convicções que se acredi­tam lúcidas: não o são, está cla­ro, exatamente porque feitas de crenças que se tornaram crendices.
A palavra "critica", desse jei­to; torna-se um "comigo não, violão" reificado: vira talismã, vira mantra. Transforma quem o pronuncia num sacerdote da sapiência, num ser superior aos outros mortais.

Cercas
A 27a edição da Bienal de São Paulo enfileira, com monoto­nia indiferente, instalações, ví­deos e algumas, poucas, pintu­ras. Bate, com insistência, na tecla do politicamente correto. Protege-se com a retaguarda dos bons sentimentos, contra os quais não se pode levantar nem um dedo mindinho: ódio à repressão, à segregação, às opressões cruéis, às tiranias.
O problema é que o inferno das artes está atapetado de bons sentimentos. Há, nesta bienal, como sempre, talvez menos do que sempre, aqui e ali, algum artista interessante.
É claro que isso não basta. O álibi das intenções éticas e inte­lectuais não consegue substi­tuir o interesse da criação. Ora, as metáforas grossas e rasteiras se sucedem, evidentes, enor­mes, em obras feitas para apa­nhar, nas suas armadilhas, o in­telectual incauto e bem-inten­cionado. Nem um pingo de re­flexão, nem um pingo de sutile­za nessa seqüência. Ao contrá­rio, um martelar autoritário do bom pensar e do bem pensante.

Ordem
A crença pode ser sincera, in­gênua e pura: deve ser esse o ca­so das convicções que presidem a 27a Bienal. Mas não importa: ao afirmar-se como impositiva, a mostra elimina debate e con­tradição. Com todos os seus de­feitos e problemas, o velho sis­tema de representações nacio­nais tinha pelo menos um mé­rito: ele limitava a autoridade do curador. Podia ser desigual, podia introduzir disparates na seleção, mas seu caráter aleató­rio era, por isso mesmo, fecun­do. Trazia problemas para os responsáveis, ensinava-os, jus­tamente, o viver junto. Na atual mostra, os artistas não vivem juntos; vivem debaixo: da idéia, do conceito, das determinações imperiosas.

Asfixia
Outro ponto é que as ambi­ções intelectuais dos critérios parecem ter dispensado qualquer vontade de entrelaçar as obras, de permitir coerências, contrastes ou discrepâncias en­tre elas. A anterior, de número 26, que não teve os favores da critica, foi, na verdade, muito poética; poesia passada, que so­bressai ainda mais no contraste com o alinhamento indiferente das obras expostas na atual.
Essas obras não estão juntas, no sentido que lhes daria Ro­land Barthes e que inspirou o título da mostra ["Como Viver Junto"]. Barthes possuía uma intuição sensível muito forte, pensava por exemplos expres­sivos e articulados, em associa­ções tantas vezes novas e sur­preendentes, que se exaspera­vam uns aos outros ou se har­monizavam.
Aqui, ao contrário, as obras seguem-se numa apatia displi­cente. O que torna difícil qual­quer expressão de novo, de des­coberta ou de fascínio.