Texto que achei na rede sobre a 27a. Bienal:
Tão perversa é a palavra "crítica". Em velhos tempos, era moda dizer: "É preciso ser crítico". Ter "postura crítica" ou "consciência crítica" seria o apogeu de uma atitude soberana, capaz de compreender o mundo para além de suas aparências e, mais ainda, de transformá-lo.
Hoje, percebe-se facilmente que, engolida assim, "crítica" quer dizer o seu avesso. Basta invocá-la como um abracadabra e pronto: o pensamento se satisfaz na superioridade. Que imagina ter encontrado. Substitui o desconforto do exame e da dúvida pela certeza cômoda das convicções que se acreditam lúcidas: não o são, está claro, exatamente porque feitas de crenças que se tornaram crendices.
A palavra "critica", desse jeito; torna-se um "comigo não, violão" reificado: vira talismã, vira mantra. Transforma quem o pronuncia num sacerdote da sapiência, num ser superior aos outros mortais.
Cercas
A 27a edição da Bienal de São Paulo enfileira, com monotonia indiferente, instalações, vídeos e algumas, poucas, pinturas. Bate, com insistência, na tecla do politicamente correto. Protege-se com a retaguarda dos bons sentimentos, contra os quais não se pode levantar nem um dedo mindinho: ódio à repressão, à segregação, às opressões cruéis, às tiranias.
O problema é que o inferno das artes está atapetado de bons sentimentos. Há, nesta bienal, como sempre, talvez menos do que sempre, aqui e ali, algum artista interessante.
É claro que isso não basta. O álibi das intenções éticas e intelectuais não consegue substituir o interesse da criação. Ora, as metáforas grossas e rasteiras se sucedem, evidentes, enormes, em obras feitas para apanhar, nas suas armadilhas, o intelectual incauto e bem-intencionado. Nem um pingo de reflexão, nem um pingo de sutileza nessa seqüência. Ao contrário, um martelar autoritário do bom pensar e do bem pensante.
Ordem
A crença pode ser sincera, ingênua e pura: deve ser esse o caso das convicções que presidem a 27a Bienal. Mas não importa: ao afirmar-se como impositiva, a mostra elimina debate e contradição. Com todos os seus defeitos e problemas, o velho sistema de representações nacionais tinha pelo menos um mérito: ele limitava a autoridade do curador. Podia ser desigual, podia introduzir disparates na seleção, mas seu caráter aleatório era, por isso mesmo, fecundo. Trazia problemas para os responsáveis, ensinava-os, justamente, o viver junto. Na atual mostra, os artistas não vivem juntos; vivem debaixo: da idéia, do conceito, das determinações imperiosas.
Asfixia
Outro ponto é que as ambições intelectuais dos critérios parecem ter dispensado qualquer vontade de entrelaçar as obras, de permitir coerências, contrastes ou discrepâncias entre elas. A anterior, de número 26, que não teve os favores da critica, foi, na verdade, muito poética; poesia passada, que sobressai ainda mais no contraste com o alinhamento indiferente das obras expostas na atual.
Essas obras não estão juntas, no sentido que lhes daria Roland Barthes e que inspirou o título da mostra ["Como Viver Junto"]. Barthes possuía uma intuição sensível muito forte, pensava por exemplos expressivos e articulados, em associações tantas vezes novas e surpreendentes, que se exasperavam uns aos outros ou se harmonizavam.
Aqui, ao contrário, as obras seguem-se numa apatia displicente. O que torna difícil qualquer expressão de novo, de descoberta ou de fascínio.
Hoje, percebe-se facilmente que, engolida assim, "crítica" quer dizer o seu avesso. Basta invocá-la como um abracadabra e pronto: o pensamento se satisfaz na superioridade. Que imagina ter encontrado. Substitui o desconforto do exame e da dúvida pela certeza cômoda das convicções que se acreditam lúcidas: não o são, está claro, exatamente porque feitas de crenças que se tornaram crendices.
A palavra "critica", desse jeito; torna-se um "comigo não, violão" reificado: vira talismã, vira mantra. Transforma quem o pronuncia num sacerdote da sapiência, num ser superior aos outros mortais.
Cercas
A 27a edição da Bienal de São Paulo enfileira, com monotonia indiferente, instalações, vídeos e algumas, poucas, pinturas. Bate, com insistência, na tecla do politicamente correto. Protege-se com a retaguarda dos bons sentimentos, contra os quais não se pode levantar nem um dedo mindinho: ódio à repressão, à segregação, às opressões cruéis, às tiranias.
O problema é que o inferno das artes está atapetado de bons sentimentos. Há, nesta bienal, como sempre, talvez menos do que sempre, aqui e ali, algum artista interessante.
É claro que isso não basta. O álibi das intenções éticas e intelectuais não consegue substituir o interesse da criação. Ora, as metáforas grossas e rasteiras se sucedem, evidentes, enormes, em obras feitas para apanhar, nas suas armadilhas, o intelectual incauto e bem-intencionado. Nem um pingo de reflexão, nem um pingo de sutileza nessa seqüência. Ao contrário, um martelar autoritário do bom pensar e do bem pensante.
Ordem
A crença pode ser sincera, ingênua e pura: deve ser esse o caso das convicções que presidem a 27a Bienal. Mas não importa: ao afirmar-se como impositiva, a mostra elimina debate e contradição. Com todos os seus defeitos e problemas, o velho sistema de representações nacionais tinha pelo menos um mérito: ele limitava a autoridade do curador. Podia ser desigual, podia introduzir disparates na seleção, mas seu caráter aleatório era, por isso mesmo, fecundo. Trazia problemas para os responsáveis, ensinava-os, justamente, o viver junto. Na atual mostra, os artistas não vivem juntos; vivem debaixo: da idéia, do conceito, das determinações imperiosas.
Asfixia
Outro ponto é que as ambições intelectuais dos critérios parecem ter dispensado qualquer vontade de entrelaçar as obras, de permitir coerências, contrastes ou discrepâncias entre elas. A anterior, de número 26, que não teve os favores da critica, foi, na verdade, muito poética; poesia passada, que sobressai ainda mais no contraste com o alinhamento indiferente das obras expostas na atual.
Essas obras não estão juntas, no sentido que lhes daria Roland Barthes e que inspirou o título da mostra ["Como Viver Junto"]. Barthes possuía uma intuição sensível muito forte, pensava por exemplos expressivos e articulados, em associações tantas vezes novas e surpreendentes, que se exasperavam uns aos outros ou se harmonizavam.
Aqui, ao contrário, as obras seguem-se numa apatia displicente. O que torna difícil qualquer expressão de novo, de descoberta ou de fascínio.