sábado, 16 de outubro de 2010

BERGSON, PONTO DE PARTIDA - por Miguel Reale (13/09/2003)

O maior filósofo francês do século passado (1859-1940) anda esquecido, apesar de lhe devermos a restituição da liberdade ao mundo da experiência e o papel da intuição no plano do conhecimento. É um pensador de formação inicial evolucionista, por ele superada definitivamente no sentido de uma metafísica concebida sobre novas bases, que procurou estabelecer em fecundo contato com as pesquisas científicas. Vejamos em que sentido surge a metafísica bergsoniana, pondo em equação, preliminarmente, o problema do método.
O pensamento de Bergson, que, sob vários aspectos, assinala o superamento do naturalismo do século XIX, baseia-se numa distinção fundamental entre inteligência e intuição, distinção que sob denominações diversas encontramos em outros sistemas, tão penetrante foi a influência do mestre gaulês. A seu ver, o homem seria senhor de dois modos ou instrumentos fundamentais de conhecer, que seriam de natureza intelectiva um, e de ordem intuitiva o outro. São dois processos que se completam, cada qual dotado de certa qualidade ou de valor próprio. A inteligência é o grande instrumento da ciência, a poderosa alavanca mediante a qual o homem se torna senhor da realidade, subordinando-a a seus fins vitais.
O homem, colocado em face da realidade, procura dominá-la. Domina-a partindo-a, dividindo-a, seccionando-a. O meio de que o homem se serve para o domínio da natureza é a inteligência, que opera por meio de quantificação ou de espacialização. O conhecimento da ciência é quase que conhecimento quantificado, numérico. Bergson, no fundo, aceita a tese de Augusto Comte de que o ideal das ciências é a matemática. Uma ciência é tanto mais exata quanto mais se avizinha do ideal das matemáticas, abrangendo o real em fórmulas e equações. O conhecimento do físico, do químico ou do astrônomo atinge perfeição extraordinária, porque é suscetível de expressar-se numericamente, em súmulas quantitativas, que partem o movimento e o representam como algo abstrato, cindindo o real em uma sucessão de visões fragmentárias, cuja redução infinitesimal se harmoniza com as exigências do “cálculo”, essencial ao saber positivo. O homem quantifica, em suma, a natureza, para dominá-la, constituindo um sistema convencional de índices quantitativos.
O tempo, por exemplo, que dividimos em minutos e horas, anos e séculos, em si mesmo não possui essas divisões. Somos nós que as inventamos, para adaptá-lo à nossa existência. O homem modela o mundo segundo sua imagem, fragmentando o real graças à inteligência. Esta, que é uma faculdade de fabricar instrumentos destinados a fazer outros instrumentos (des outils à faire des outils) não pode representar a realidade tal como essencialmente é. Observa Bergson, que esse conhecimento fica, de certa maneira, na superfície das coisas. É um conhecimento instrumental, que tem significado e sentido tão-somente porque satisfaz a fins de ordem prática.
Sentimos, no entanto, a necessidade de achegarmo-nos ao ser, sem o intermédio dessas fórmulas numéricas fragmentárias e quantitativas; de entrar em contato direto e imediato com o “real”, o não suscetível de ser partido e quantificado. O real, diz Bergson, é fluido, contínuo e inteiriço. Somos nós que o partimos e fragmentamos. A realidade é “duração pura” sem hiatos e intermitências. Como será possível ao homem atingir aquilo que é em si uno e concreto, todo e contínuo, autêntico, não deturpado? O instrumento de penetração do homem no mundo da durée pure seria a intuição.
A intuição é o processo próprio do filósofo ou do homem enquanto filosofa. A intuição é um modo de conhecer que tem algo do instinto e da emoção, ou, como diz Bergson, é “uma espécie de simpatia espiritual”. O conhecimento intuitivo opera-se diretamente, como uma sondagem no real para coincidir com aquilo que ele tem de concreto, de único, e, por conseguinte, de inefável. Pense-se na atitude espiritual diante dos problemas estéticos, do senso artístico. Compreensão estética não é quantificação numérica, mas é, ao contrário, uma identificação com o próprio objeto contemplado, de maneira que a poesia seria uma forma fundamental, inicial, de compreensão do ser.
Há algo de imaginoso nos conceitos bergsonianos de intuição, de “impulso vital” (élan vital), duração pura (durée pure), etc. Aliás, Bergson deve, em grande parte, o sucesso e a grande repercussão de sua doutrina à sua poderosa capacidade expressional. Não conheço filósofo moderno que tenha sido capaz de escrever filosofia com tanta beleza e riqueza de imagens como Bergson e Nietzsche, os dois pensadores que elevaram a filosofia a uma expressão estética fundamental, reconduzindo-a à beleza reveladora do modelo platônico.
Bergson dá-nos um exemplo ou uma imagem interessante para distinguir-se inteligência de intuição. Analisemos o conhecimento de uma cidade. Podemos conhecer Rio de Janeiro ou Paris por meio de plantas, guias, fotografias. Obtemos fotografias precisas dos quarteirões, das principais praças e monumentos, lemos guias, decoramos nomes de ruas, estudamos a situação das igrejas, dos museus e dos teatros. Eis um conhecimento típico da inteligência, pela contemplação de fragmentos, pela composição daquilo que previamente se dividiu e se separou. Este é um conhecimento puramente intelectual. Comparemo-lo, no entanto, com o conquistado por quem vai morar na cidade, põe-se em contato com suas ruas, com suas casas, com sua gente, não fica na visão fragmentária do todo, mas se insere naquilo que é insuscetível de divisão e de fragmentação. Quem vive assim na cidade penetra no coração da realidade urbana. É um conhecimento por dentro, não por fora apenas, um intus ire, um ir dentro da coisa, para surpreendê-la no que ela possui no íntimo, ou seja, na sua natureza genuína. A intuição, portanto, é uma via de acesso direta ao real de maneira que o homem se identifique com o real concreto, com a “duração pura”.
Outra contribuição decisiva de Bergson consistiu em ter restituído a liberdade à experiência existencial, ultrapassando a posição de Emmanuel Kant, para quem a liberdade seria uma conseqüência do dever, do imperativo categórico, segundo a fórmula: “tu deves, logo podes”. Para Bergson, ao contrário, a liberdade, como autodeterminação, é a condição mesma da existência. Pelos motivos expostos, Bergson pode ser considerado o ponto de partida tanto do intuicionismo fenomenológico de Husserl, como do existencialismo de Heidegger.

domingo, 26 de setembro de 2010

Artista: acima de qualquer suspeita?, por Affonso Romano de Sant'anna (Artigo do Diário do Nordeste)

Em artigo, o escritor e crítico de arte Affonso Romano de Sant´anna aborda a polêmica que vem sendo causada pelas obras de Gil Vicente na Bienal de São Paulo
A 29 Bienal de São Paulo está propiciando uma discussão que não pode ficar na superfície dos fatos. Com efeito, a Bienal anterior, que denominei de "a bienal do vazio" não se interessou em discutir a fundo o problema que levantou e tudo terminou como uma questão policial. Agora surgiu a polêmica em torno dos desenhos do artista pernambucano Gil Vicente, nos quais ele aparece atirando em Fernando Henrique Cardoso, cortando a garganta de Lula e matando outros lideres mundiais como Nethanyahu, Armadinejad, Rainha Elizabeth e o Papa atual.
Formaram-se logo dois grupos opostos. A OAB, exercitando seu discurso jurídico prometeu processar o artista e/ou a Bienal por incitação ao crime e à violência, e do outro lado os curadores afirmando que isto é censura. E alçaram a palavra "censura" como um talismã que os protegesse.
A questão me parece mal colocada. E quando se coloca mal uma discussão, deriva-se para outros mal entendidos. Consideremos primeiro que esse episódio remete para algo conhecido no mundo antigo como "morte em efígie". Não se podendo destruir o réu, destruía-se sua imagem, arrasando sua memória. Mas não é a primeira vez que dentro da modernidade ocorre um crime semelhante. Em 1965 três pintores mataram Marcel Duchamp. Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo pintaram oito quadros realistas nos quais surpreendiam Duchamp subindo uma escada, esmurravam-no, torturavam-no e jogavam-no escada abaixo nu. Duchamp, que propunha a morte da arte, não gostou de se ver morto ali. E analisando esse quadro/episódio no livro "O Enigma Vazio" (Ed.Rocco) eu dizia que não é matando, mesmo em efígie, o ícone da arte de nosso tempo que o entenderemos. O desafio é ir a fundo na sua vida&obra ( que foi o que tentei fazer). Além do mais, a violência dos três pintores insere-se no quadro violento dos anos 60/70 quando o pensamento totalitário à esquerda e à direita achava que pela força resolveriam problemas sociais e políticos.
Portanto, preservando-se o direito do artista se expressar, mas alertando para as consequências disto, não se pode deixar de ver na obra daquele artista pernambucano um paradoxal exercício da violência. A meu ver, deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa e cubana, que cortar a cabeça dos lideres é inócuo. Por outro lado, ressurge aí a síndrome voluntarista, perversa e autoritária do "justiceiro" -figura que a sociologia estuda pertinentemente.
Acima de qualquer suspeita?
Isto posto é crucial trazer à discussão uma pergunta: E´ o artista um cidadão acima de qualquer suspeita? Ésta é uma clara alusão ao filme de Elio Petri ("Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto"-l971). Naquela película, um policial comete um assassinato, e por pertencer aos altos escalões do sistema julga-se tão incólume que até participa das investigações. Transpondo para o caso da Bienal e da arte atual, pergunta-se: estaria o artista acima de todas as leis sociais?
Para começar a entender essa pergunta, lembre-se que a ditadura recente nos deixou uma marca deletéria: depois de tanta repressão, caímos na ânsia de repressão nenhuma. Mergulhamos no oposto. Por isto, o mote: "é proibido proibir", que tem o seu charme juvenil, é um paradoxo, pois proibir a proibição é exercitar a proibição e a censura, só que do outro lado.
Por sua vez, a ideologia da pós-modernidade, alardeia que tudo é legitimo, que não há fronteiras, nem valores, que as coisas se esgotam em si mesmas sem qualquer outro compromisso que não seja hedonista e narcísico. Portanto, um vetor nacional e outro internacional se complementam em forjar uma ideologia de época, que deve ser analisada cautelosamente.
Isto nos leva a um outro aspecto já que esta 29 Bienal tem como tema "Arte e política". Ora, falar da política convencional é fácil. Acusar políticos, verberar contra os militares, é uma banalidade. Eles são os " outros". No entanto, há um enfrentamento político, igualmente urgente, dentro das artes. É´ necessário questionar o sistema em que as artes se baseiam. Isto consiste em rever o poder dos curadores, o sistema das galerias, as premiações, o critica universitária e jornalística, a publicidade, a bolsa de valores, enfim, o "deus ex machina" que hoje, mais do que nunca, controla as artes- o mercado. E para esclarecer a esquizofrenia do sistema artístico e de nossa sociedade, leiamos esse poema do antipsiquiatra R.D. Laing:
Ele estão jogando o jogo deles / eles estão jogando de não jogar o jogo / se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão / quebrarei as regras desse jogo / e receberei a sua punição / O que devo pois é jogar o jogo deles / o jogo de não ver o jogo que eles jogam.
Na última Bienal isto ficou claro: os grafiteiros que denunciaram o "jogo" do qual não podiam participar foram parar na polícia. Na atual Bienal já ocorrem reclamações semelhantes, comprovando que a arte oficial de nosso tempo não consegue resolver seu paradoxo fundamental: diz que não há fronteiras, que tudo é licito, desde, é claro, que sejam suas as fronteiras e desde que sejam "eles" a decidirem o sistema que tutelam.
Todo mundo é artista?
Grande parte da arte contemporânea se baseia em silogismos que nunca foram analisados detidamente. Se analisados, revelam-se como falácia. Falácias que levam a becos sem saída.
Retomemos a questão implícita no conceito de que o artista pode tudo, que ele é um cidadão acima de qualquer suspeita. Existe um silogismo básico na prática da arte oficialista ( o governo deu R$ 46 mihões para a Bienal), silogismo originário de Duchamp, segundo o qual a arte morreu e todo mundo é artista.
Ora, vejamos o silogismo aí contido: todo mundo é artista / o artista está acima de qualquer suspeita / logo, todo mundo esta acima de qualquer suspeita. Como se sabe, essa verdade é mentirosa. Se todo mundo estivesse acima da lei, não existira lei, nem sociedade. Esse silogismo é ainda falacioso, enganador, porque sabemos que nem todo mundo é artista e que uns são "mais" artistas que outros. Pior, dentro do sistema da artes, que hipócrita e espertamente decretou que tudo é arte e todos são artistas, grupos bem organizados e presos sobretudo às leis do mercado e do marketing controlam as leis éticas e estéticas que, paradoxalmente, dizem não existir.
Portanto, uma discussão radical sobre política e arte passa pelo exame interno do sistema das artes hoje e tem que enfrentar certos paradoxos, dilemas e sofismas. É´ uma operação tão arriscada e séria que pode levar a um suicídio histórico, a um colapso do sistema. Ou, então, o que seria admirável, ao renascimento da própria arte de uma forma para nós ainda inimaginável.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

TESTAMENTO DE RODIN

JOVENS QUE DESEJAIS ESTAR ENTRE OS CELEEBRANTES DA BELEZA, TALVEZ VOS AGRADE ENCONNTRAR AQUI O RESUMO DE UMA LONGA EXPERIÊNCIA.

Amai com devoção os mestres que vos precederam.

Inclinai-vos diante de Fídias e de Michelangelo. Admirai a divina serenidade de um, a feroz angustia do outro. A admiração é um vinho generoso para os espíritos nobres.
Entretanto, preservai-vos de imitar os mais velhos. Respeitosos da tradição, sabei discernir o que ela encerra de eternamente fecundo: o amor à Natureza e a sinceridade. São essas as duas paixões dos gênios. Todos adoraram a Natureza e nunca mentiram. Deste modo, a tradição vos estende a chave graças a qual podereis evadir-vos da rotina. É a própria tradição que vos recomenda interrogar incessantemente a realidade e que vos proíbe de vos submeter cegamente a qualquer mestre.
Que a Natureza seja vossa única deusa. Nela depositai uma fé absoluta. Estai certos de que ela nunca é feia e limitai vossa ambição a lhe ser fiéis.
Tudo é belo para o artista, pois em todo ser e em toda coisa, seu olhar penetrante descobre o caráter, isto é, a verdade interior que transparece sob a forma. E essa verdade é a pr6pria beleza. Estudai religiosamente - não podereis deixar de encontrar a beleza, porque encontrareis a verdade.
Trabalhai obstinadamente.
Estatuários, fortificai em vós o sentido da profundidade. O espírito dificilmente se familiariza com essa noção. Ele só representa distintamente superfícies, sendo-lhe difícil imaginar formas em espessura. Aí esta, portanto, a vossa tarefa.
Antes de tudo, estabelecei nitidamente os grandes planos das figuras que esculpis. Acentuai vigorosamente a orientação que dais a cada parte do corpo, à cabeça, aos ombros, à bacia e às pernas. A arte exige decisão. É pela fuga bem acentuada das linhas que mergulhais no espaço e que vos apoderais da profundidade. Quando vossos planos se fixarem, está tudo descoberto. Vossa estátua já vive. Os detalhes nascem e, em seguida, ordenam-se por si mesmos.
Enquanto modelais, não penseis jamais em superfície, mas em relevo.
Que vosso espírito conceba toda superfície como a extremidade de um volume que a empurra por trás. Imaginai as formas como se estivessem apontadas para vós. Toda vida surge de um centro, depois germina e desabrocha de dentro para fora. Do mesmo modo, na boa escultura, adivinha-se sempre um poderoso impulso interior. É o segredo da arte clássica.
Vós, pintores, observai, da mesma forma, o real em profundidade. Olhai, por exemplo, um retrato pintado por Rafael. Quando esse mestre representa um personagem de frente, ele faz o peito fugir obliquamente e é assim que dá a ilusão da terceira dimensão.
Todos os grandes pintores sondam o espaço. É na noção de espessura que reside a sua força.
Lembrai-vos disso: não ha traços, só ha volumes. Quando desenhais, nunca vos preocupeis com o contorno, mas com o relevo. É o relevo, que rege o contorno.
Exercitai-vos sem descanso. É preciso acostumar-vos à profissão.
A arte não é senão sentimento. Mas sem a ciência dos volumes, das proporções, das cores, sem a destreza da mão, o sentimento mais vivo paralisa-se. O que aconteceria com o maior poeta em um pais estrangeiro cuja língua ele ignorasse? Na nova geração de artistas há um grande número de poetas que, infelizmente, se recusa a aprender a falar. Por isso, não fazem mais que balbuciar.
Paciência! Não conteis com a imaginação. Ela não existe. As únicas qualidades do artista são: sabedoria, atenção, sinceridade e vontade. Cumpri vossa tarefa como operários honestos.
Jovens, sede verdadeiros. Isto porém, não significa: sede banalmente exatos. Há uma exatidão elementar - a da fotografia e do modelado. A arte só principia com a verdade interior. Que todas as suas formas, todas as suas cores traduzam sentimentos.
O artista que se contenta com o trompe-l'oeil (tipo de pintura que produz ilusão de ótica – N. da T.), e que reproduz servilmente detalhes sem valor, nunca será um mestre. Se visitastes algum campo santo da Itália, provavelmente observastes a puerilidade com que os artistas encarregados de decorar os túmulos limitam-se a copiar, em suas estátuas, os bordados, as rendas, as tranças de cabelo. Não são verdadeiros, já que não se dirigem à alma.
Quase todos os nossos escultores lembram os dos cemitérios italianos. Nos monumentos de nossas praças públicas, distinguimos apenas sobrecasacas, mesas, veladores, cadeiras, máquinas, globos e telégrafos. Nada de verdade interior, logo, nada de arte. Desprezai esses trastes.
Sede profundamente, ferozmente verídicos. Nunca hesiteis em expressar o que sentis, mesmo quando vos opuserdes às ideias prontas. Talvez não sejais logo compreendidos. Mas vosso isolamento terá curta duração. Amigos logo virão procurar-vos - pois o que é profundamente verdadeiro para um homem, o é para todos.
Contudo, nada de caretas ou contorções para atrair o público - simplicidade, singeleza!
Os temas mais belos encontram-se diante de vós: são os que conheceis melhor.
Meu caríssimo e extraordinário Eugene Carriere, que tão cedo nos deixou, deu mostras de gênio ao pintar sua mulher e seus filhos. Bastou-lhe celebrar o amor maternal para ser sublime. Os mestres são os que olham com seus próprios olhos o que todos viram e que sabem perceber a beleza do que é demasiado comum para os outros espíritos.
Os maus artistas vêem sempre com os olhos de outrem.
O essencial é emocionar-se, amar, esperar, vibrar, viver. Ser homem antes de ser artista! A verdadeira eloqüência zomba da arte. Retomo, aqui, o exemplo de Carriere. Nas exposições, a maior parte dos quadros é apenas pintura - os dele, no meio dos outros, pareciam janelas abertas para a vida!

Acolhei as críticas justas. Ireis facilmente reconhecê-las. São aquelas que vos confirmarão uma dúvida que já vos assalta. Não vos deixeis atingir por aqueles que vossa consciência não admite.
Não temais as críticas injustas. Elas revoltarão os vossos amigos, forçando-os a refletir sobre a simpatia que tem por vós e que manifestarão com mais segurança quando dela melhor discernirem os motivos.
Se vosso talento é novo, só contareis no primeiro momento com poucos partidários e tereis uma quantidade de inimigos. Não vos desencorajeis. Os primeiros triunfarão - pois eles sabem porque vos amam - os outros ignoram porque vós lhes sois odiosos. Os primeiros são apaixonados pela verdade para a qual recrutam, incessantemente, novos adeptos - os outros não testemunham qualquer zelo duradouro por sua opinião falsa. Os primeiros são tenazes, os outros vão ao sabor dos ventos. A vitória da verdade é certa.
Não percais vosso tempo a estabelecer relações mundanas ou políticas. Vereis muitos dos vossos confrades chegarem às honrarias e à fortuna pela intriga - não são verdadeiros artistas. Alguns são, no entanto, muito inteligentes e se vos empenhardes a lutar com esses pseudo-artistas em seu próprio território, ireis consumir tanto tempo quanto eles, isto é, toda a vossa existência: não vos sobrará, portanto, mais um minuto para ser artista.
Amai apaixonadamente vossa missão. Mais bela não há; é muito mais elevada do que o vulgo possa crer.
O artista dá um grande exemplo. Ele adora o seu ofício - sua mais preciosa recompensa é o prazer de trabalhar bem. Atualmente, que tristeza! Os operários são persuadidos, para a sua infelicidade, a odiar seu trabalho e a sabotá-lo. O mundo só será feliz quando todos os homens tiverem almas de artistas, quer dizer, quando todos encontrarem prazer em sua tarefa.
A arte é, ainda, uma magnífica lição de sinceridade.
O verdadeiro artista expressa sempre o que pensa com o risco de sacudir todos os preconceitos estabelecidos.
Ele ensina, assim, a franqueza aos seus semelhantes.
Ora, imaginemos que maravilhosos progressos se realizariam repentinamente se a verdade absoluta reinasse entre os homens.
Ah! Com que presteza a sociedade se livraria dos erros
e deformidades que tivesse confessado
e com que rapidez nossa terra
se tomaria um Paraiso!
AUGUSTE RODIN

quarta-feira, 30 de junho de 2010

"Visão e Rotina", trecho do livro Pensando o Buddhismo, por Bhikkhu Bodhi.

Todas as atividades humanas podem ser vistas como uma interação entre dois fatores contrários, mas igualmente essenciais: a visão e a rotina repetitiva. A visão é o elemento criativo na atividade, cuja presença assegura que as condições estabelecidas, as quais nos pressionam desde o passado, dêem ainda margem a uma abertura para o futuro, uma liberdade para discernir os fins significativos e descobrir caminhos mais eficientes para atingir estes fins. A rotina repetitiva, ao contrário, provê o elemento conservador na atividade. É o principio que assegura a persistência do passado no presente, e que possibilita às conquistas bem sucedidas no presente serem preservadas intactas e serem transmitidas fielmente para o futuro.

Apesar de atraírem para direções opostas – uma em direção à mudança, e a outra em direção à estabilidade – visão e rotina se mesclam em várias formas, e dentro de todo curso de ação ambas participam em alguma medida. Para que qualquer ação em particular seja ao mesmo tempo significativa e efetiva, a conquista de um equilíbrio saudável entre as duas é necessária. Quando um fator prevalece às custas do outro, as conseqüências são invariavelmente indesejáveis. Se ficarmos presos em um ciclo repetitivo de trabalho que nos priva de nossa liberdade de inquirir e entender, logo nos tornaremos atolados, totalmente envoltos pelas correntes da rotina. Se, por outro lado, nos envolvemos em ideais elevados, mas carecemos da disciplina para implementá-los, eventualmente nos encontraremos voando em sonhos, ou exaurindo nossas energias em objetivos frívolos. Somente quando as rotinas habituais recebem um influxo de visão que venha de dentro é que elas se tornam um trampolim para a descoberta, ao invés de rotinas destruidoras. E somente quando a visão inspirada dá nascimento a um curso de ações que podem ser repetidas é que nós podemos trazer nossos ideais da esfera etérea de nossa imaginação para o sombrio reino dos fatos. Foi necessário somente um flash de gênio para Michelangelo conceber a figura de Davi, invisível no bloco de pedra sem forma, mas foram precisos anos de treinamento anterior e incontáveis batidas do martelo e do cinzel para construir o milagre que nos legou esta obra de arte. (...)

domingo, 30 de maio de 2010

Entrevista no site Fundação Maurício Grabois

Um pintor realista contemporâneo em São Paulo
Por Mazé Leite

A pintura figurativa data de milhares de anos, desde que os primeiros artistas pintaram nas paredes das cavernas, como em Altamira, na Espanha, ou em Lascaux, na França. Mais de 15 mil anos depois, continuamos transformando o que vemos em obras de arte, uma atividade permanente e necessária à alma humana. A arte figurativa, apesar de viver nos tempos atuais certo ostracismo, mantém-se silenciosamente consistente e ativa, como sempre esteve. Afinal, apesar de alguns teóricos do neoliberalismo pós-moderno, a Arte não morreu! Um exemplo muito concreto é o artista plástico paulistano Maurício Takiguthi, pintor realista. Maurício concedeu-me a entrevista abaixo em seu atelier na Rua Frei Caneca, em São Paulo, onde sou uma entre seus 70 alunos. Vale à pena a leitura atenta até o final, uma vez que ele aborda temas muito importantes no que diz respeito às artes plásticas atuais, assim como ao pensamento contemporâneo. Filosofando sobre a arte realista, ressalta o humanismo presente na pintura figurativa, em contraposição à arte conceitual, fria, discursiva e abstrata, longe do humano e da realidade de seu tempo.

Maurício, conte um pouco da sua trajetória artística.
Maurício – Na minha infância e adolescência, gostava muito de quadrinhos e de desenhar super-heróis, mas sempre com “cara” de ilustração, não de pintura. Até que um dia meu irmão gêmeo me convidou a fazer um curso de pintura que, apesar da minha resistência inicial, acabei indo. Por sorte, tinha um professor de pintura que morava a três quadras de casa. Ele tinha estudado pintura acadêmica na Europa. A partir daí, com o tempo e com a prática, fui descobrindo que minha grande paixão era tentar representar a figura com ilusão de profundidade. Para mim aquilo era uma coisa mágica, conseguir representar uma figura com volume, e foi isso que me fez pegar gosto pela pintura. Só que ainda não era figura realista, mas acadêmica, seguindo a formação do meu professor daquela época.Depois meu irmão acabou tomando o caminho da arquitetura, e eu fiquei na pintura. Com o passar do tempo, percebi que estava chegando num limite, pois compreendi que a simples representação objetiva do modelo era uma coisa muito pobre. Foi quando comecei a investigar mais a parte conceitual-técnica da pintura, por conta própria. Um dia me deparei com o livro da Betty Edwards, “Desenhando com o lado direito do cérebro”, e, junto com livros de pintores realistas norte-americanos, comecei a estudar com mais profundidade as bases do desenho e da pintura.
Como foi seu caminho em direção à pintura realista?
Maurício – Com esses estudos, fui descobrindo que o campo da pintura era muito maior, que existem conceitos técnicos que expandem e orientam a ação, assim como existe uma relação especial que se estabelece entre o artista e a pintura. Nos livros que fui lendo, percebi que o Realismo – para o qual existem várias definições – foi muito menos um movimento unificado e muito mais uma linha de pensamento localizada historicamente no tempo e no espaço, o que faz do realismo alemão, por exemplo, ser diferente do russo, que é diferente do francês, que é diferente do norte-americano. O Realismo é muito difícil de definir porque ultrapassa aquela visão que muitos têm de que se trata apenas de uma mera representação objetiva do real (a tão chamada “cópia” da natureza), que é uma definição, do ponto de vista técnico, mais genérica. Burton Silverman, pintor realista contemporâneo dos EUA, com quem tive um workshop no ano passado, por sua vez, chama de realismo esse registro emocional das relações que ele mantém com as pessoas na vida cotidiana. Para mim, o realismo é a representação desse modo como eu encaro, percebo e me relaciono com o mundo real. Mas, por exemplo, (aponta uma de suas telas, onde surgem rostos humanos no tronco de uma árvore), alguém poderia dizer, olhando para essa pintura, que ela é uma pintura simbólica, ou mesmo expressionista, ou surrealista. É engraçado, pois para mim ela é uma pintura realista. Às vezes, para eu poder traduzir o modo como vejo ou sinto a realidade, eu preciso distorcê-la por ser a melhor maneira de expressá-la. A coisa se passa mais ou menos assim: ao estabelecer relações com o mundo real, através da minha percepção e concepção, impressões e sensações são geradas e são elas os elementos a serem impressos na minha pintura.
Aqui em seu atelier você pretende que ele seja uma escola de pintura realista?
Maurício – Pretendo que seja uma Escola enquanto pensamento realista e não escola de formato institucional como uma academia. Isso por dois motivos: pela diferença que existe na natureza do enfoque como treinamento e também pela concepção. O primeiro diz respeito à correlação entre nível de institucionalização e grau de liberdade. Numa escola de pintura acadêmica, por exemplo, de certa forma, impõe-se o pensamento na forma de regras e a tendência é massificar o ensino. Apesar de a formação basear-se num bom esquema para desenhar de observação, o aluno adquire habilidade prática, mas que tende a ser mecânica. No sistema de atelier, o aprendizado não se dá de forma tão rígida ou fechada, o pensamento se torna mais individualizado, possibilitando maior flexibilidade e maior grau de independência. O aluno age mais livremente. Trabalha-se mais com o conhecimento a partir da existência de critérios, não tanto de regras. Conceitualmente, no sistema acadêmico, o pintor está mais preocupado em representar o mundo de maneira estritamente objetiva. Tem como intenção “copiá-lo” tal qual ele se apresenta, por mais que isso seja impossível (já que a subjetividade sempre vai estar presente), através da linha. Essa ênfase da representação do tema pela linha tem como característica o limite e contraste das formas. O claro e escuro estão subordinados à forma. A ordem nasce da linha como ponto de partida e o caos, longe de ser administrado, é eliminado. Não há qualidades voltadas para o ordenamento mental ou seleção do mais significativo. O modelo realista do tipo pictórico, neste ponto, oferece muito mais possibilidades. Este último se apropria dos elementos do real, para impor simultaneamente a sua personalidade, visão, concepção e emoção, numa tarefa difícil que combina objetividade e subjetividade. Para tal intento, o realista, por outro lado, deve necessariamente buscar o essencial na imagem, por critérios que auxiliam a elaboração mental. Outro traço distintivo em relação aos acadêmicos lineares é que, a partir do momento em que você busca representar a luz nas coisas (e não as coisas com luz), a massa ultrapassa a forma e o limite da linha é eliminado. E com isso o mundo se abre! O artista pictórico é incumbido de administrar o caos durante todo o processo e de buscar um trabalho mental mais consistente. Neste ponto, a pintura realista cria a combinação interessante entre pensamento e sensação (situada mais no campo intuitivo). Isso me atraiu muito! A pintura realista, como eu vejo, é esse campo de ação infinito, complexo e muitas vezes indefinido, onde o conceito serve de referência que orienta a ação intuitiva. Não para estabelecer regras que ensinem etapas e modos de fazer determinado tema, que acabam engessando a visão de mundo. Muito pelo contrário, o pintor realista é uma espécie de observador que registra suas impressões do mundo, traduzindo-o em pinceladas, cores, valores, bordas, etc. É nesse processo de ordenamento desse mundo caótico que forma e conteúdo emergem como síntese que o artista expressa e a pintura adquire, por conseqüência, o status de pensamento e de expressão.
Qual a diferença entre essa visão da arte realista e a arte abstrata?
Maurício – Eu vejo da seguinte forma: o pintor abstrato nega, por princípio, a representação dos objetos da realidade e a ilusão tridimensional de profundidade e tem sob enfoque estritamente os elementos visuais inerentes à imagem bidimensional. O pintor realista, por sua vez, pode também focar os mesmos elementos visuais, pela descolagem da imagem de seu objeto, mas sem negar a realidade. Para ele, a ilusão de profundidade pelo uso seletivo da luz é fundamental. É neste sentido que a abstração, entendida como processo de organização mental da imagem, não faz parte do monopólio da arte abstrata. Muitos dos pintores pictóricos no passado o fizeram, em alto nível de complexidade, por meio de conceitos técnicos de construção, como Velásquez, Vermeer, Whistler, Rembrandt, Sargent, entre outros (mas para entender como isso se dá, seriam necessários estudo e visão em profundidade, coisa que não dá para exigir de quem nega o conhecimento dos fundamentos do desenho e pintura...). Outra diferença entre a arte realista e a abstrata é o nível de preconceito que o pintor realista tem de enfrentar, que a é o da valoração de cunho ideológico. Toda representação figurativa tradicional recebe o rótulo de conservador, retrógrado ou acadêmico e é julgada sumariamente como fria, mecânica, inexpressiva ou desprovida, a priori, de criatividade ou conceito. Portanto, a diferença, em última instância, entre um pintor abstrato e um realista não recai tanto no nível de abstração, mas sim na recusa da representação dos objetos da realidade com ilusão de profundidade e também no grau de preconceito. Vivemos um momento esquizofrênico e contraditório na arte, no qual, a liberdade consiste em poder fazer o que quiser, desde que não seja figurativo.
Em 2009, você foi a Nova Iorque participar de uma oficina com o pintor realista Burton Silverman. Fale um pouco do seu aprendizado com ele.
Maurício – Uma das questões que ele deixou claro: no mundo existem milhões de pintores, mas a partir do momento em que você se lança a desenhar ou a pintar, você deve ter um bom motivo para fazê-lo, que pode ser subentendido como você tem que fazer a diferença! O artista precisa saber qual é o seu papel no mundo. Burton tem um viés de esquerda, é um intelectual preocupado com o que acontece à sua volta. Ele estava discutindo o estado atual da arte nos EUA, que é hoje o centro da pintura realista. Na visão dele, existe hoje um excesso de pintura representacional pasteurizada, em que os pintores até podem executar bem, mas fazem de um modo impessoal, descritivo, frio. Para ele, o Realismo deve ir além adquirindo tanto função social como estética. Função social no sentido de representar a sociedade em que vivemos, desde a cultura até o ponto de vista mais subjetivo, onde está inserida a relação que ele, como pintor, estabelece com o mundo de hoje. Aliás, foi essa critica que ele me fez. Ele me perguntou por que eu pinto como os barrocos? Porque eu não pinto a cultura japonesa ou a sociedade brasileira? Ele tem esse lado político.
E o que você achou dessa provocação dele?
Maurício – Eu busquei até agora, ao invés de me localizar no tempo e no espaço atual, me situar em algo mais universal. Há uma crítica social ou olhar contemplativo em meu trabalho, mas reconheço que é uma abordagem mais universal, dissociada do tempo e do espaço.Mas Silverman me fez algumas sugestões: se quero pintar uma figura, que tem a solidão como tema, que isso se faça dentro de um contexto. O contexto de Silverman é a sociedade norte-americana atual, do século XX e agora XXI, que ele demarca no seu contexto histórico. Eu penso em começar a trabalhar mais dessa forma. Acho que é um desafio bom.
Em seus quadros, dá para ver que seu foco é mesmo na figura humana. Isso é uma escolha?
Maurício – Sim, porque é claro que dá para o artista se expressar através de uma natureza-morta ou mesmo de uma paisagem. Mas, para mim, a figura humana é muito mais desafiadora, pelo duplo desafio de representá-la no mais alto nível de exigência e de conseguir colocar na tela o meu olhar sobre elas. Gosto desse lugar de observador da condição humana e evidenciar o meu estranhamento diante das coisas. É seguramente tema mais difícil. É o que me atrai. Na abordagem realista, com intuito de ordenar e expressar a relação com o mundo visível, é necessária a união de elementos como conceito (diretriz de ação), técnica (meios de expressão) e sensibilidade (intuição). Isso nos faz encarar o processo como algo inteiro e é isso o que nos faz humanos: essa capacidade de perceber o real, de interagir com ele, de estabelecer uma relação emocional mas também de entendimento. Um entendimento que se dá de uma forma racional e também intuitiva. O grande problema é que, na sociedade de massas, com a fonte infinita de informação, ausência de critérios (claros e definidos) e, portanto, incapacidade de seleção ou mesmo de julgamento consciencioso, as pessoas perdem a capacidade discernir e acabam agindo pela aparência mais superficial das coisas. A própria exigência de tomar decisões rápidas com base em poucas informações, em função do ritmo acelerado de vida, dificultou a contemplação e a busca da compreensão, substituídas pela dedução. O que se cultiva, por tabela, coletivamente, é o uso dos olhos racionais e não da visão em profundidade.
Por falar em sociedade de massas, e a chamada arte contemporânea?
Maurício – Essa arte atual sofre desse mesmo mal falado anteriormente. Os processos de arte são superficiais e estereotipados, as pessoas navegam social e culturalmente dentro da arte por uma linguagem que se dá por chavões. Um bom exemplo disso é essa ideia corrente de que jogar no papel ou na tela qualquer coisa sem critério ou técnica tem nome de liberdade ou espontaneidade. Qualquer coisa espontânea, preferencialmente sem sentido, adquire o status de expressivo, através de convenção. Certa vez, li num jornal um artista dizendo que passou 12 horas seguidas fazendo desenho compulsivamente sem parar, com uma pausa apenas para comer um pedaço de pizza. Não foram 12 horas de treino ou de trabalho orientado por algum tipo de conceito (critério) e sim 12 horas em que ele foi tomado ou “possuído” pelo desenho. É engraçado, para não dizer triste, o esforço existente de tentar propagar esta imagem de que a compulsão confere ao artista uma qualidade ou virtude estética. O mais comum é tentar achar racionalmente um significado mais profundo usando recursos verborrágicos. Isso se propaga facilmente, principalmente, neste ambiente propício onde o público não entende nada (pela ausência de critérios de validação estética) e se sente perdido. Essa confusão decorrente da “instalação” do vazio na arte, contudo, é bastante útil, pois na ausência de qualquer regulação, nesta sociedade movida por aparências, é que a arte contemporânea consegue preencher com o conteúdo que lhe convier. Apesar de convertida em mercadoria no sistema atual como investimento financeiro, representa simbolicamente fonte de prestígio, de poder e até de certo nível intelectual, que nem sempre o comprador, o novo rico, tem, mas pode insinuar.
E para quem não reza na cartilha da arte contemporânea, como sobreviver?
Maurício – o caminho alternativo é criar seu próprio nicho, buscar circuitos alternativos ou mesmo viver com atividade paralela. O que foi possível perceber há alguns anos é que, sendo um artista de base tradicional, dificilmente conseguiria ter acesso a instituições de arte de ponta. Parece que a partir de certo nível os espaços têm dono. A única possibilidade se você quiser expor é entrar “no esquema”. No começo eu era bem ingênuo, achava que o bom trabalho era suficiente para se sustentar, mas com o tempo percebi que o buraco é bem mais embaixo: primeiro tem que ter bons contatos (como produtores culturais que vejam no seu trabalho uma alternativa rentável no sentido financeiro e também como ideia facilmente assimilável neste processo de propagação em massa), um trabalho que se adapte “ao gosto do freguês”, uma boa estratégia de apresentação à elite econômica, uma assessoria de imprensa forte, bem paga; depois, conseguir aprovar seus projetos, captar recursos, procurar críticos e curadores que estejam interessados nisso, etc. Precisaria ter toda uma estrutura por trás que estivesse a fim de investir nisso. O sistema de arte virou mais um ramo do mercado, virou comércio. Atualmente, impera o conceito, muito falada nos bastidores mas nunca assumido publicamente, de que boa obra é obra vendida. A maior preocupação não é com o que o artista tem a dizer, mas com quanto dá para faturar em cima dele. E nesse esquema ultra concorrido, o artista procura enquadrar-se para ser aceito, mesmo que seja para usar artifícios que o identifiquem como transgressor, excêntrico, “afetado”, louco, entre outros adjetivos esdrúxulos. Nessa sociedade de massas, quem grita mais alto é que pode chamar a atenção do mercado, da mídia e assim obter mais espaço...
Sociedade do espetáculo...
Maurício – É necessário entender que tudo isso é sintoma de uma época contra o qual talvez não haja solução no campo da ação individual. No livro Oil Painting Techniques and Materials, livro de Harold Speed, é possível entender essa correlação entre classe social que detém o poder político e o tipo de arte desenvolvida. Se no século XVIII, a arte destinava-se para a aristocracia; no século XIX, para a classe média; no século XX a arte seria moldada à lógica da sociedade de massas. Diante disso, é possível entender a necessidade hoje de buscar o escândalo como modo de vida artístico. Sabendo disso, a solução que vislumbro para os artistas realistas é a de encontrar os seus pares. Conseguir dialogar com pessoas que tenham os mesmos interesses, os mesmos desejos e ambições, mas sem a preocupação de que isso repercuta em escala social. O Silverman, por exemplo, na década de 60 criou um movimento realista com seus colegas de faculdade e escreveu um Manifesto Realista. Ponderou que aquela iniciativa e luta não valeram a pena. O jornalista de Nova Iorque na ocasião disse que aquilo não era notícia. Com essa experiência, Silverman chegou à conclusão de que o que derradeiramente importa é dar exemplo. Acho que também é o máximo que posso fazer. Minha intenção é mais pessoal: eu quero atingir um nível alto na pintura!

A arte realista hoje se concentra mais nos EUA? Por que?
Maurício – Um dos principais motivos é que, onde se concentra o dinheiro, há maior concentração de artistas também. Isso explica em parte, mas não porque há um número tão grande de realistas. Outra explicação possível é de que o americano nunca deixou de lado, talvez por uma questão cultural e de valor, a representação das coisas, mesmo no pós-guerra, com a campanha governamental intensa contra a pintura realista, identificada simbolicamente com o regime socialista soviético. Outro fator fundamental e decisivo foi o alto nível de institucionalização da arte realista ou acadêmica nos vários setores sociais, na forma de ateliês, academias, faculdades, museus, sociedades artísticas (do pastel, do retrato, etc), mídia impressa, e a grande comunicação entre eles. No Brasil, não há cultura técnica e culturalmente ainda é muito forte a difusão da concepção de que a criatividade ou improvisação nascem da falta (de formação e de conhecimento) ou da carência. A grande dificuldade nossa é que o nosso padrão cultural ainda é de país colonizado. Então a preocupação continua sendo: o que está acontecendo lá fora? O que é de “bom tom” fazer para ser considerado “descolado”? Isso ajuda a explicar em parte esse fenômeno de repetir velhas fórmulas do século passado consideradas ainda de vanguarda...

É o que se observa hoje. Repetições excessivas das velhas fórmulas... A transgressão se institucionalizou.
Maurício – Chega a ser antagônico, porque hoje em dia transgredir a transgressão ou mesmo o estado vigente é restabelecer a ordem nesse mundo caótico sem regras ou critérios. O grande imbróglio insolúvel reside na convenção inquestionável de que a transgressão é libertária.Vigora um tipo de ignorância que é o orgulho de ser esse tipo de analfabeto visual, a pessoa que se recusa a adquirir conhecimento técnico, justo ela que permite ler a imagem, saber como ela funciona, compreendê-la, para poder manipulá-la. A técnica é tida como algo mecânico, duro, e não como meio ou instrumento de expressão. Parece que, para ser artista o pré-requisito, é ter atitude “afetada” ou compulsiva voltada para o entretenimento da grande platéia, que por sua vez, na maioria esmagadora das vezes também não entende nada do que vê e precisa ser avisada de se trata de uma obra artística. O público o vê como um excêntrico despirocado. O realista como observador do seu tempo cultiva outra postura. O domínio das várias técnicas lhe dá um vasto repertório, como espécie de “vocabulário” visual, para poder se expressar. O processo é uma construção que lapida, desbasta e exige a tomada de várias decisões. A soltura longe de ser essa liberdade de jogar qualquer coisa vaga na tela, compensada depois por palavras, é aquela de poder ordenar mentalmente cada etapa do processo, escolher várias ferramentas à disposição para saber conduzir o trabalho expressivo.
E o que ensinam as escolas de arte atuais?
Maurício – As escolas de arte e as faculdades de arte tornaram-se as atuais academias. Mas com uma diferença gritante: antigamente, eles sabiam executar e dominavam as várias fases do fazer. Hoje, transforma-se objetos prontos em arte pelo “dom da palavra” e a repetição é ensinada como ato inovador a ser reproduzido infinitamente. Há algo de contraditório e estranho no ar: há um ambiente opressivo em nome do monopólio da verdade artística. Se no passado, o aluno que soubesse desenhar era visto com bons olhos por revelar certa aptidão para as artes, atualmente isso não é só condenado pelos professores, como também pelos colegas. Tenho alunos que contam como os colegas olham feio para ele pelo fato de saber desenhar ou querer trabalhar com desenhos figurativos tradicionais. Uma vez eu perguntei a uma professora da ECA/USP por que eles não ensinavam pintura figurativa? Ela respondeu: “olha, você tem que entender que a pintura acadêmica morreu”. Mas as faculdades de artes inventaram uma nova arte acadêmica que impõem regras inusitadas: numa sessão de modelo vivo, por exemplo, você não deve desenhar o que vê ou interpretá-lo. O discurso sempre é daquele tipo: solte-se! Liberte-se da figura! Qualquer um de bom senso poderia pensar: se é para me livrar da figura, então por que há uma posando na minha frente? O fato é que esse tipo de contradição ou falta de coerência é ensinado na faculdade enquanto valor. Logicamente, você não é obrigado a representá-lo sob o modo realista ou acadêmico, mas qualquer indício de representação fidedigna é castrado por ser considerado algo retrógrado ou uma má influência. Alguns alunos que questionaram a proibição da abordagem representacional acabaram sendo reprovados. São pequenos exemplos que evidenciam o caráter opressivo, ininteligível e “nonsense” desta nova ordem acadêmica. As escolas de arte, ao adotarem uma postura mística e ideológica a partir da década de 60, em defesa da falta de formação, treino e conhecimento prático e conceitual dos instrumentos de expressão, como pré-requisitos para a criação, estabeleceram como valor, paradoxalmente, a aversão ao aprendizado e a qualquer tentativa de entender o processo prático.A nova Academia, como você diz, impõe a arte conceitual.
Se tudo fica no reino da subjetividade, como fica a obra de arte? Por isso se diz que nas melhores galerias de arte contemporânea há sempre muito papel para se ler?
Maurício – Sim, a partir do momento em que se convencionou que o conceito é mais importante que a obra e esta é mera ilustração dele, fragmentou-se o processo. O que parece reino da subjetividade é na verdade a instituição da arbitrariedade, instituição de um tipo de verdade que tem a transgressão como centro e também a instalação de um grande vazio, preenchido pelo discurso. O processo tornou-se exclusivamente racional. Daí a importância da existência de critérios de validação mais coerentes como peças fundamentais para eliminar essa falta de correspondência entre obra e legenda de que falou e eliminar esse abismo entre o espectador e as obras de arte. Neste ponto é que podemos pensar que a boa obra de arte se sustenta sem o recurso da “arte verbal”. A diferença básica entre os mestres do passado e muito da arte de hoje, é que as obras dos primeiros sobrevivem sem a “muleta” das palavras – invariavelmente as palavras ilustram a obra e não o contrário. O que de certa forma contribuiu para isso, principalmente no caso dos grandes mestres do passado, foi o domínio técnico de todo o processo. Michelângelo, por exemplo, pessoalmente escolhia o mármore, verificando qual era o melhor tamanho e forma para suas peças em que ia trabalhar, desenhava os esboços, fazia estudos e projetos para visualizar a obra e aí sim esculpia, sempre com a ideia total de todo o processo. Isso sem falar do seu conhecimento técnico da função da linha, da massa, anatomia e perspectiva linear. Os grandes pintores, assim como ele, escolhem o modelo, a incidência da luz, a tela, a tinta, o pincel, escolhe o enquadramento, que tipo de informação ele vai salientar ou eliminar a partir do modelo, ou que tipo de distorção vai ser necessária para representar aquilo que ele quer. Isso é técnica e é esse contato íntimo com o processo que possibilita o artista mais sensível se expressar melhor. Aquilo que permite ao artista manipular a imagem, ter controle sobre a imagem, é a técnica. A técnica é este conjunto de meios que viabilizam a expressão e a ferramenta de que dispomos para poder melhor representar o que queremos, seja uma ideia, uma imagem ou uma sensação. É, por isso, que neste sentido, a boa técnica está sempre a serviço da expressão. Na arte da transgressão, ao contrário, basta você dizer um clichê qualquer que remeta à ideia de sensibilidade para você ser considerado sensível. É só adotar uma frase pronta, repetir o que um outro disse para que todos deduzam ou elogiem sua inteligência. Você pode fazer qualquer coisa e buscar boas justificativas depois, contratar uma boa assessoria de imprensa ou crítico, que tá tudo certo.
Mas é o que impera hoje nas artes plásticas, em qualquer exposição de arte contemporânea.
Maurício – A arte se desumanizou quando a sua lógica passou a ter como base de sustentação a ideia de que é arte tudo aquilo que fosse definido como tal. O que poderia resgatar ou traduzir o que há de mais humano, universal e perene em nós mesmos deu lugar à busca neurótica e alienada da novidade, do espetáculo, da transgressão, do escândalo. Vale a pena citar Ferreira Gullar. Para ele, essa postura racional, influenciada pelo discurso científico, “impôs que a emoção e a intuição passassem a ser velharias. Só que ao fazer isso, a arte caminhou para a auto-destruição, pois a imaginação é a matéria-prima da arte. Por isso, a arte plástica acabou, pela exclusão desses elementos.”Como pintor realista, gostaria que a arte fosse esse campo de respiro e sensibilidade, do conhecimento e da visão em profundidade, mas não sei se dá para ser tão otimista, uma vez que a própria sociedade, público para o qual é feita a arte não tem voz ativa, qualquer poder de decisão, dentro do atual sistema. É suficiente lembrar uma entrevista, para ilustrar, na qual um professor da ECA-USP, discutindo os rumos da Bienal em São Paulo, afirmou "que não dá para resolver o eterno divórcio entre o público e as obras quando nunca houve casamento". A questão fundamental que toca a natureza da relação entre o público e obra artística, é saber, em última instância, para quem a arte deve ser dirigida: se para o todo da sociedade, numa visão mais democrática e sem preconceitos, ou para meia dúzia de intelectuais que se comprazem em discutir o futuro da arte sem que a grande maioria participe.

segunda-feira, 29 de março de 2010

O mercado de arte, a arte do mercado e o vale-tudo, por Mazé Leite

Luciano Trigo, jornalista e estudioso das artes plásticas, lançou, no final de 2009, o livro “A Grande Feira – uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea”. Em entrevista exclusiva, Luciano fala dos motivos que o levaram a escrever esse livro, que levanta questões muito interessantes para o debate sobre a arte atual.

Há algum tempo foi noticiado através da imprensa, que a Prada – a famosa casa de design de moda – começou a construir em Milão, Itália, um Museu de Arte Contemporânea com mais de dez mil metros quadrados de área. A mesma marca que inspirou livro e filme “O Diabo Veste Prada”, cuja presidente, Miuccia Prada, também possui uma grande coleção de obras de arte, será a partir de 2012 (ano previsto para inauguração do Museu) o mais novo paraíso de curadores, marchands, colecionadores e negociantes do mercado da arte. Um templo da arte contemporânea a mais, onde rezam alguns dos ícones da nova vedete do mercado de ações: a arte visual.
Luciano Trigo, jornalista brasileiro, carioca, inquieto com a observação desse estado atual das artes no Brasil e no mundo, desde 2007 começou, corajosamente, a questionar o que está sendo feito e o que está sendo visto em museus e bienais de arte contemporânea. Essa inquietação levou-o a escrever o livro A Grande Feira – uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea, com o objetivo de verificar “o peso da herança da arte conceitual, a relação entre arte e mercado e o significado da pós-modernidade na arte”.
“Acompanhando as exposições, ao longo dos anos – diz Luciano na entrevista exclusiva – eu comecei a sentir uma certa inquietação diante do que me parecia uma reciclagem sem fim de linguagens e procedimentos do passado, mas fora de seu contexto original. Comecei a pesquisar e refletir sobre o assunto e publiquei os primeiros textos no meu blog, em 2007”. Luciano diz que as reações foram tão fortes – de todos os lados – que ele sentiu que “tinha tocado num tema importante” e decidiu aprofundar sua investigação, o que resultou no livro.
A Grande Feira, um livro repleto de exemplos concretos sobre a relação entre os artistas, suas obras e o mercado, faz uma abordagem muito boa sobre o que Luciano Trigo chama de “o sistema da arte”, que inclui mercado de ações, galeristas, curadores, marchands, mídia, e, no final dessa cadeia, o artista plástico absorvido por esse sistema, aquele que tem espaço para expor em galerias e museus da moda.
Luciano, fazendo uma retrospectiva histórica da arte, diz que o legado das grandes tradições artísticas do passado foi desprezado “ou pelo menos esvaziado” pelos setores que representam a arte contemporânea. Ele diz que esse processo teria começado simultaneamente à ascensão do modelo neoliberalizante de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, no início dos anos 80. Isso que ele chama de “onda politicamente conservadora” que se espalhou pelo mundo, beneficiada pela queda do Muro de Berlim e pela derrocada dos países socialistas, trouxe consigo uma nova visão do papel da arte e do artista na sociedade. E trouxe consigo também a tese do “fim da história”.
“A tese neoliberal do fim da História – continua Luciano na entrevista – tem um correspondente na arte pós-moderna, que é a tese do fim da Arte, ou do fim da História da Arte, que é defendida por Arthur Danto e Hans Belting. Basicamente, eles entendem que a Arte deixou de seguir um caminho evolutivo, como acontecia na modernidade, e que hoje a gente vive um pluralismo baseado, justamente, na releitura, muitas vezes irônica, de movimentos do passado. Este é o pano de fundo teórico da produção artística contemporânea.”
Essa releitura, nas artes plásticas, de movimentos artísticos do passado, movimentos esses que eram fruto do profundo entrelaçamento entre arte e vida, hoje está despida de sentido e a arte cada vez mais se aproxima dos universos da moda, da publicidade e das imagens comerciais da cultura de massa. O falso pluralismo apregoado hoje por esse sistema, esconde o império da arte conceitual, que num certo sentido é a matriz da arte contemporânea, como ele explica no livro.
A capa do livro de Luciano, retrata uma obra conceitual do inglês Damien Hirst, um tubarão morto imerso em formol, vendido em 2004 por 12 milhões de dólares. Hirst é esse novo modelo de “artista” do mercado. Conta com uma equipe de mais de cem assistentes, que executam suas obras, pois ele raramente o faz com suas próprias mãos. Até mesmo as telas que assina, são pintadas por seus assistentes. “Ou seja, do artista não se espera mais que crie, apenas que assine”, diz Luciano.
O mesmo vale para o aperfeiçoamento técnico do artista, pois o desenho perdeu importância. Hoje, cada vez mais impera a arte que Ferreira Gullar chama de “Caninha 51”, ou a “arte da boa idéia”. E Luciano acrescenta que pela lógica do mercado da arte atual, qualquer um pode se dizer artista “em função da eliminação de pré-requisitos ligados à técnica, ao aprendizado, à experiência e ao talento”. Arte é qualquer coisa que o artista defina como arte, o reino do vale-tudo.
Ele diz na entrevista: “Eu entendo que a arte virou um grande clube, e que sua lógica se aproximou da lógica da moda e da indústria do espetáculo. Não há contrapoderes dentro desse sistema, porque a crítica de arte acabou. Há uma grande comunhão de interesses entre uma elite de artistas, as instituições e o mercado”.
No começo do século XX, ricas experiências estéticas resultaram nos vários “ismos” que se condensaram no modernismo. Foi uma época de grande engajamento dos artistas na vida de seus países, além de grande produção teórica e muita experimentação estética, coisa que não se vê nesses tempos de neoliberalismo globalizante. A arte figurativa, e até mesmo a pintura como uma expressão plástica, tem sido considerada, dentro das escolas de arte atuais, como coisa do passado, esquecendo-se eles de que o figurativismo, onde se inclui a arte realista, sempre esteve presente mesmo nos momentos de predominância da arte abstrata.
Um dos argumentos que essa nova classe de artistas e seus aliados têm feito é de que a arte sempre esteve atada ao sistema, desde a Idade Média. É verdade, afirma Luciano, e se passaram mais de duzentos anos para que a arte acadêmica, instituída pelo estadista francês Jean-Baptiste Colbert e pelo pintor Charles Lebrun, fosse questionada. “Com Gustave Courbet – diz Luciano em seu livro – a arte se libertou não apenas de imposições formais como também da subordinação estrita a esferas alheias, como a religião e a política”. Courbet foi o iniciador do Realismo nas artes plásticas, no século XIX.
Hoje a situação é radicalmente diferente. Segundo Luciano, até mesmo o artista “que se julga de esquerda, alimenta e se beneficia de mecanismos selvagens de especulação capitalista, numa subordinação total à lógica do mercado globalizado e à dinâmica da mídia e do espetáculo”. A arte de hoje é a arte domesticada pelo dinheiro e pelas estratégias de marketing. O mercado, hoje, exerce, então, o mesmo papel que antes era exercido pela Academia, que ditava as regras: o deus-mercado determina o que tem ou não valor artístico.
Voltando a falar sobre esse pensamento predominante em meio a uma crítica inexistente, Luciano afirma: “Tudo isso acontece com o beneplácito das elites intelectuais, que demonstram uma receptividade acrítica sem precedentes, ao que lhes é vendido como arte”, embora a saída, para ele, comece exatamente pela abertura do “debate transparente sobre o estado atual da arte”.
No Brasil, esse debate ainda sofre muito preconceito. Até o momento, poucos foram os que ousaram discordar da opinião predominante, como Ferreira Gullar, Afonso Romano de Sant'Anna e o próprio Luciano Trigo. Afonso Romano, que além de crítico de arte é poeta, como também o é Ferreira Gullar, disse, há algum tempo, que não é chamado a dar palestras ou participar de seminários sobre arte em muitas instituições brasileiras. A elas não interessa esse debate, porque estão atreladas a esse sistema.
Sobre isso, Luciano disse na entrevista: “Essas reações emocionais - e às vezes, raivosas - a esses questionamentos mostram que o nível da reflexão sobre arte no Brasil está muito ralo. É um raciocínio binário, que separa as pessoas em amigas e inimigas, e qualquer pensamento independente é muito mal recebido. Na França e nos Estados Unidos, são inúmeros os autores que criticam as regras da arte hoje.” Mas ressalta que muitos artistas, professores e estudantes de arte brasileiros, receberam seu livro de forma muito positiva.
Sobre o papel da arte e do artista no mundo de hoje, Luciano falou que o artista, “ao aderir incondicionalmente a um sistema dominado por interesses de mercado” faz com que seu papel e o da própria arte esteja perdendo relevância. “É claro que dá para tentar negar isso, embrulhando com um discurso sofisticado e pretensioso cada artista novo que aparece - e a cada ano é preciso que surjam novos nomes, como na música pop.” Com um tipo de arte tão assemelhado à moda, é compreensível que o artista famoso hoje, seja o ofuscado de amanhã... Que papel representa esse tipo de arte narcisista, voltada para uma meia dúzia de “iluminados”, que não dialoga com o público?
Luciano Trigo lembra também em A Grande Feira, que a passagem da arte moderna para a arte contemporânea não se deu por uma simples coincidência. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um “deslocamento do polo artístico hegemônico da Europa para os Estados Unidos”.
Mas isso não se deu de forma passiva. Pelo contrário, os Estados Unidos, através da CIA, orquestrou uma campanha que alcançou os principais países europeus, e mesmo a América Latina, com a finalidade de apresentar ao mundo uma nova arte, que começou com o Expressionismo Abstrato. Depois incentivaram artistas da Action Painting como Jackson Pollock, o minimalismo, a Pop Art e a arte conceitual. Essa campanha está descrita pormenorizadamente em um outro livro, “Quem Pagou a Conta?”, da jornalista inglesa Frances Stonor Saunders.
A arte como expressão de uma boa idéia (Caninha 51), na verdade repete à exaustão o ato conceitual de Marcel Duchamp com seu famoso urinol, ou as milhares de performances, das mais bizarras às mais perversas. Essa arte da boa ideia não sobrevive sem um discurso, chegando-se ao absurdo de que para cada obra conceitual seja criado um palavreado acadêmico, o que obriga o público de arte a uma situação no mínimo cômica: ao invés de “contemplar” a obra de arte, ele precisa ler o texto explicativo da obra. E coitado daquele que não entender...
Voltando à entrevista, Luciano conclui: “O debate que eu proponho não é sobre a qualidade estética da arte contemporânea, mas sobre a sua lógica interna, as suas regras ocultas, a sua rede de relacionamentos e poder. Acho que levantei questões interessantes no livro, e as reações a ele mostram que existia uma demanda reprimida por esse debate no Brasil.”Que, esperamos, seja ampliado ao máximo. Em prol da Arte.

sábado, 13 de março de 2010

Vale-tudo na arte?, por Ivan Padilha

O jornalista Luciano Trigo começou a tecer suas críticas ao mercado de arte no blog Máquina de Escrever, em 2007. As respostas de leitores e internautas o levaram a aprofundar o debate no livro A Grande Feira, lançado no final do ano passado. Confira a seguir a entrevista com Trigo.

Como se pode medir a qualidade de uma obra de arte contemporânea?
A arte conceitual, as performances, as instalações e outros tipos de produção artística surgiram nos anos 60 e 70 como formas de contestação ao mercado e às instituições. Foram as últimas vanguardas modernas, um movimento autêntico de expansão e de libertação do campo artístico. Quando essas práticas foram reapropriadas e enquadradas pelo mercado e pelas instituições, a partir do final dos anos 70, isso gerou um problema: obras por natureza efêmeras ou mesmo imateriais, em suma, obras anti-mercado, passaram a ser codificadas segundo uma lógica ligada à arte como mercadoria. O resultado são instalações que pedem espaço e ar livre, ou interação com a vida cotidiana, apertadas em salas de galerias, ou obras feitas de material perecível indo parar nas reservas técnicas dos museus, de onde nunca mais vão sair. Houve uma refetichização do objeto de arte aplicada a uma arte de matriz conceitual, o que é uma contradição em termos. E houve também uma reafirmação do ideal romântico do artista como gênio iluminado, agora na condição de estrela pop, de pose transgressora mas muito bem-sucedido. No exterior isso é debatido claramente, mas no Brasil ainda é tabu.
Uma galerista disse que, como o mercado brasileiro de arte ainda é pequeno quando comparado aos mercados europeu e americano, não há espaço para obras de baixa qualidade. Você concorda?
Isso não faz muito sentido. De qualquer forma um dos problemas da arte hoje é que uma obra se torna relevante pela mídia que recebe e pela sua cotação no mercado, e apenas por isso. São dois fatores altamente manipuláveis. Quem daria atenção a um tubarão mergulhado em formol, obra do Damien Hirst, se ele não fosse apresentado pela mídia como uma grande obra e se não fosse vendido por milhões de dólares? Ninguém, pelo simples fato de que qualquer pessoa pode fazer coisas parecidas - o que as pessoas comuns não têm é um estrategista marqueteiro por trás, como o Hirst teve o Charles Saachi, que inventou toda uma geração de artistas. Como não existe mais a crítica de arte como contrapoder, não há mais a possibilidade de discussão sobre o valor estético da obra em si, nem interessa em que haja, então falar de qualidade ficou problemático. A crítica abriu mão de julgar, seu papel hoje é endossar os artistas que o sistema elege.
Seu livro está centrado principalmente em exemplos de fora. Você citaria artistas brasileiros cujo sucesso tem por base o marketing exagerado e a especulação em detrimento da qualidade?
Mesmo sem dar quase nenhum exemplo brasileiro, o livro A Grande Feira já me fez colecionar olhares tortos, mesmo entre artistas que aprecio, então prefiro não citar nomes. Mas posso citar, sim, artistas que reagiram de forma positiva ao debate que o livro provoca, como Adriano de Aquino, Ivald Granato, Iran do Espirito Santo e Antonio Veronese, entre outros, além de Gianguido Bonfanti e Gonçalo Ivo, que escreveram textos de apresentação. O problema é que no Brasil a reflexão sobre a arte ficou tão rala que as pessoas reagem a qualquer questionamento com um raciocínio binário, que classifica como reacionário quem critica e como aliado quem engole qualquer coisa. É a lógica do compadrio, da rede de relacionamentos. Tanto que o comentário que mais ouço é que meu livro é "corajoso". Será que chegamos num ponto em que é preciso ter coragem para refletir sobre a arte?

Obra de Cildo Meireles
Qual sua opinião sobre os artistas brasileiros contemporâneos, como Cildo Meireles, Tunga, Beatriz Milhazes, Ernesto Neto e Adriana Varejão?
É importante ficar claro que A Grande Feira não é um livro de crítica de arte, mas uma investigação, entre jornalística e sociológica, sobre as regras da arte, sobre o sistema da arte hoje, isto é, sobre o conjunto de práticas, valores e instituições que determinam que tipo de arte será valorizada e reconhecida. Então meu gosto pessoal não é relevante para a discussão que proponho. Dito isso, acho o Cildo Meireles fundamental, talvez o mais importante artista brasileiro vivo - especialmente na sua produção dos anos 60 e 70, que combina questões políticas e sociais com reflexões sobre a própria natureza da arte. O Ernesto Neto e a Adriana Varejão, que são da minha geração, têm obras interessantes, o Neto pela plasticidade, a Adriana pelo diálogo inteligente com a Arquitetura e a História. Os dois, por outro lado, se projetaram já num contexto pós-moderno, de dominação da arte por uma lógica dominada por razões de mercado, aproximando- se da moda e da indústria do espetáculo. É esse contexto que eu coloco em questão, não a obra deste ou daquele artista. Já do Tunga gosto de alguma coisa da produção mais antiga, como as xifópagas capilares, mas sua produção recente me parece uma bobagem. Por exemplo, uma performance com sete bailarinos, 40 estudantes de biologia, 600 rãs, 2 mil girinos, 40 mil moscas e milhares de larvas. Nessa altura do campeonato, qual a relevância disso? Aí se cria uma aura em torno da obra, como se qualquer coisa produzida pelo Tunga fosse grande arte. Muitas vezes um artista acaba criando um personagem de si mesmo e não consegue mais sair dele: passa a acreditar naquilo que o sistema diz que ele é. Já os quadros da Beatriz Milhazes são bonitos, mas repetitivos, variações sobre o mesmo tema.
Mais de um galerista com quem conversei citou Romero Britto como exemplo de artista que se vale de auto-promoção, já que ele não tem trabalhos em museus e nem participa de feiras de arte (o sucesso de sua obra seria, portanto, um modismo). Você concorda com esse exemplo?
Eu nem gosto da obra dele, mas acho engraçado criticarem o Romero Britto. Em nome de quê? Ironicamente, o fato de ele não estar nos museus e nas feiras faz dele hoje um transgressor. A mainstream da arte hoje são os artistas, geralmente de matriz conceitual, que enriquecem reproduzindo procedimentos de 50 ou até 90 anos atrás. Esta é a arte acadêmica de hoje, porque é a arte que se ensina nas escolas de arte. Recebi dezenas de mensagens de estudantes do Brasil inteiro relatando que não se ensina mais técnica, nada, nas escolas. Essa situação é muito grave, é todo um conhecimento que se perde. O estudante entra hoje na escola de artes visuais e aprende que o "quente" é fazer um bigode com creme de barbear no rosto e intitular a obra "Tributo a Frida Kahlo", como faz a Sarah Maple, a nova estrela da arte britânica. Qualquer adolescente faz isso, é uma coisa velha, de 90 anos atrás. Marcel Duchamp designou a roda de bicicleta como obra de arte em 1913, e o urinol em 1917. Até quando vamos considerar isso contemporâneo?
Você diz em seu livro que os críticos hoje seriam espectadores, e não mais críticos. As críticas, ou matéria a respeito de obras e exposições que continuam sendo publicadas em revistas e jornais, hoje, têm maior ou menor importância para a promoção do artista do que em décadas passadas?
Os textos que ainda saem na imprensa são, quase sempre, vagos e descritivos, e muitas vezes apoiados em releases. Um crítico, hoje curador, já disse textualmente que o papel da crítica deixou de ser julgar e passou a ser testemunhar. Para mim este foi o atestado de óbito da crítica de arte. Para testemunhar não é preciso ser crítico. O crítico deveria funcionar como um contrapoder no sistema da arte, fazendo um julgamento esclarecido e bem informado sobre a obra de arte. Sem esse contrapoder, prevalecem os interesses comerciais e estratégicos dos donos do poder na arte.

quarta-feira, 10 de março de 2010

4X Brasil

Affonso Romano de Sant' Anna

No Palácio do Planalto em 2005 estão alguns dos guerrilheiros dos anos 60 e 70.
No Congresso Nacional em 2005 estão vários políticos que nos anos 60 caíram na clandestinidade.
O Presidente do Brasil em 2005 é um metalúrgico que nos anos 70 era líder sindical.
Estou começando a dizer o seguinte: a periferia chegou ao centro.
Estou começando a dizer o seguinte: os marginais de ontem chegaram ao poder.
Estou começando a dizer o seguinte: houve um giro de 360º nos acontecimentos e em nossas perspectivas. Somos num certo sentido uma geração privilegiada porque conseguiu ver e viver o verso e o reverso da medalha. Portanto, urge confrontar épocas e rever toda uma trajetória para nos perguntarmos: "o que aprendemos até hoje?”¹.
Em 2003, Mick Jagger - o debochado cantor líder dos Rolling Stones foi condecorado "cavaleiro" pelo príncipe Charles da Inglaterra. Aconteceu com a extravagante banda inglesa o mesmo que ocorreu com os Beatles que, tendo desencadeado uma revolução na música e nos costumes, antes, também foram condecorados pela rainha. Naquele tempo, dizia-se que os Rolling Stones estavam à esquerda dos Beatles. No entanto, acabaram igualmente no Palácio de Buckingham. O fato de Mick Jagger comparecer à cerimônia da condecoração de tênis não o afirma a como um indivíduo da "margem", mostra apenas que o tênis também foi coroado.
Lanço aqui aquilo que em propaganda se chama de "teaser" - uma frase solta, um slogan prenunciando, algo que vem depois numa maciça campanha publicitária. Ou seja: poderia intitular esta comunicação assim: Da utopia à anomia. Ou para tomar o texto academicamente mais impressionável e aceito: Da utopia da modernidade à anomia da pós-modernidade.
Mas começo falando de nossos iguais, de nós que viemos dos anos 60 e conseguimos, mal grado os obstáculos e nós mesmos, chegar até aqui. Muitos partiram antes. Como disse num poema:

"Não era isto o combinado.
Eles estão se adiantando, os meus amigos.
Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar"².

Estou me lembrando, por exemplo, do mítico Betinho, o sociólogo, o irmão do Henfil, o organizador do programa de combate à fome. Mas estou me lembrando do Betinho que era meu colega em Belo Horizonte nos anos 60, quando eu cursava a Faculdade de Filosofia da UFMG e ele a recém criada Faculdade de Ciências Econômicas, de onde saíram vários guerrilheiros, inclusive o saudoso Juarez Brito, com quem conversava sempre no bandeijão da universidade e que virou lugar-tenente de Lamarca e morreu metralhado ou suicidado no Rio.
1. Título de uma aula inaugural dada em meia dúzia de universidade na década de 90, analisando criticamente o século XX.
2 Eles estão se adiantando - ln O lado esquerdo do meu peito Ed. Rocco, 1992, Rio.
Betinho é também uma metáfora do que comecei a dizer quando falei dos guerrilheiros no Palácio do Planalto, do presidente hoje que era líder sindical ontem, quando falei do rock enquanto marginalidade e poder.
O Betinho que nos anos 80 voltou de um longo exílio em vários paises, criou o IBASE lançou essa mobilização para combater a fome, foi nos anos 60 e 70 um maoísta, que acreditava na revolução como forma de modificar de vez a história. Numa biografia de Betinho feita por Ricardo Gontijo - e para a qual fiz a orelha - há estórias muito pedagógicas, politicamente, sobre sua trajetória de um lado ao outro da experiência humana.
Não é só o Betinho. Olhem essas ONGs espalhadas pelo país. Quantas delas são geridas, quantas foram criadas por ex-guerrilheiros de ontem?
Teria ocorrido um giro de 360 graus da revolução ao assistencialismo?
A mudança estrutural de ontem teria sido substituída pela atuação apenas pontual? Interessa-me menos qualificar essa modificação do que assinalar formalmente a mudança, uma mudança estrutural de comportamento e visão do mundo.
Ao dizer isto, estou já me inclinando noutra direção, direção mais esclarecedora do que está embutido no que estou tentando desdobrar como raciocínio. E o que vou dizer, poderia ser resumido nesta frase: viemos de uma geração de utópicos.
Digo isto e lembro aquela outra frase que lancei anteriormente, meio aleatoriamente, quando disse que poderia intitular essa apresentação de: Da utopia à anomia.
Começo então pela utopia.
Nossa geração foi criada dentro de uma ideologia utópica: a Modernidade. A Modernidade, aliás, como o Romantismo, são ideologias siamesas, utópicas. Romantismo e Modernidade acreditavam na História com H maiúsculo. Ou seja, na história segundo a visão não apenas marxista, hegeliana e cristã, mas numa História que, para usar uma expressão que tenho empregado em vários textos, caminha em sentido de flecha. Ela parte de um determinado lugar para chegar a outro. A História teria um desenho linear. Sai-se do Gênesis para o Apocalipse, onde nos espera, na catástrofe, a redenção. Os revolucionários marxistas colocaram dentro da catástrofe (ou conflito de classes) a criação do estado dialético, onde teríamos a beatitude seráfica dos eleitos da História.
Neste sentido, a arte moderna, que irrompe mais claramente com os manifestos literários no princípio do século XX, alardeia a utopia, o progresso onde a máquina estaria a serviço do artista. (Alguns foram até mais radicais, o homem é que estaria a serviço da máquina, como foi satirizado por Chaplin em Tempos Modernos). A mitificação do progresso, constituído como motor propulsivo da história foi tanta, que para fazer logo uma paródia, e pela paródia, como pela charge, traçar melhor o perfil do que estamos dizendo, no Brasil, essa ideologia progressista da modernidade fez com que em qualquer vilazinha se encontre uma "Mercearia Progresso", "Padaria Progresso", "Alfaiataria Progresso". Enfim, isto estava já no emblema de nossa bandeira positivista: "Ordem e Progresso". (E ler os nomes de ruas, nomes de lojas, enfim as inscrições nos grafitos urbanos é desconstruir certa ideologia). Com efeito, os positivistas também modernos no seu tempo achavam que a história, marchava em linha reta. Começava com estado Teocrático (no mundo primitivo) e terminava com o Estado Positivista, onde a razão seria a nova religião, não se sabendo muito claramente onde começava uma e terminava a outra.
Dois exemplos tautologicamente exemplares: Maiakovski pela esquerda e Ezra Pound pela direita, personagens da vanguarda e do modernismo, ambos tinham uma visão utópica da história. No modernismo brasileiro, de novo Plinio Salgado, que antes de ser líder integralista era escritor pela direita, ou Oswald de Andrade e Jorge Amado pela esquerda, viveram essa utopia divergente.
Pois os anos 60 foram um período de recrudescimento utópico. A revolução cubana arrebatou toda a nossa geração. Até filósofos que deveriam ser mais sensatos, como Sartre, deixaram-se empolgar. No caso de Sartre, foi mais grave e radical, pois foi também maoísta.
E foi neste contexto que os que estão participando das rodadas dessa discussão surgiram. Lembro-me de Fernando Gabeira, por exemplo, no Jornal do Brasil, para onde me chamou para trabalhar com ele no Departamento de Pesquisa, em 1967, antes de ele cair na ilegalidade e participar do seqüestro do embaixador Elbrick. Lembro-me de tê-lo ido visitar na cadeia depois dos ferimentos e da tortura. E com ele tenho continuado esse diálogo textual e literário desde seu retomo, quando publicou a autocrítica em O que é isso, companheiro?, sobre o qual discorri no ensaio É isso aí, companheiro³.
Lá, naqueles anos e naquele jornal, também estava Nelson Motta (outro colega nestes debates), participando e ajudando a parir o movimento tropicalista e já participando do histórico programa Flávio Cavalcanti na TV Tupi. E Luiz Carlos Maciel, diretor de teatro, já ia se configurando como guru, editando o jornal Rolling Stones, escrevendo livros não apenas sobre Sartre, mas tomando Marcuse e Norman O'Brown como seus gurus, aplicando-se a expandir o underground e outras formas de utopias marginais.
De minha parte, fazendo agora um depoimento, depois das experiências com os grupos de vanguarda e de ter participado do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, fui lecionar nos Estados Unidos; e, na Califórnia, durante dois anos, vi de perto e vivi a utopia da cultura hippie, participei dos love-in dos teach-in, das marchas contra a guerra no Vietnã, seja em São Francisco ou em Los Angeles. Acho que posso até botar em meu curriculum que assisti a um concerto dos Beatles em Los Angeles...
Sem complicar muito, como seria lícito fazer em linguagem acadêmica, quando se começa a falar de modernidade, criando uma parábola que sintetize vários pensamentos aqui embutidos, eu tomaria uma frase emblemática daquela época para começar a contrastar com o que ocorre nos nossos dias, esses dias em que uma insidiosa anomia parece nos grudar às sem-saídas do presente.
Daquelas frases de 68 inscritas nos muros de Paris, tomo uma: "É proibido proibir", Como nos fascinava! Era a liberdade absoluta, uma resposta, na Europa, ao peso da tradição que engessava os estudantes na universidade e no sistema; no Brasil, na canção de Caetano num daqueles festivais, uma reação à censura imposta crescentemente desde 1964.
Essa frase lida hoje tem algumas lições a nos dar. Examinando-a do lugar onde estamos, essa "É proibido proibir" deixa de ser uma frase libertária e utópica e passa a ser uma frase igualmente autoritária, posto que ao enfatizar o "proibir", ainda que paradoxalmente, está reafirmando um centro, uma verdade única. É Uma frase tão contraditória quanto aquela fórmula que vulgarmente se aplica à teoria da relatividade: "Tudo é relativo". Então, podemos paradoxalmente raciocinar: a afirmativa "tudo é relativo" é uma afirmativa absoluta, absolutista, que nega a si mesma, tanto como a frase dos rebeldes jovens de 68 que, ao proibir a proibição remete gostosa e idi1icamente para o paraíso, mas pode desencadear também a anomia, a entropia e o impasse.

3 Política e paixão. Ed. Rocco, 1984, Rio.

No contexto em que estamos, quarenta anos depois, descobrimos que ao contrário de "é proibido proibir", é também legal dizer "Não", dizer "Basta". Diria, correndo todos os riscos de ser mal interpretado, que esta é uma das diferenças fundamentais entre aquele ontem e o este hoje. Não é verdade que existe liberdade sem limites. Não é verdade que existe revolução permanente. Não é verdade que tudo é arte ou que arte seja qualquer coisa que qualquer pessoa chame de arte. Enfim, não é verdade que qualquer coisa é igual a.qualquer coisa. Não é verdade que uma sociedade, que uma cultura possa viver sem "valores" e sem um "cânone”: O que não significa que "valores" e "cânone" tenham que ser verdades pétreas. Como disse Whitehead: "a arte de uma sociedade livre consiste primeiro: em manter um código simbólico; e, depois em não temer a revisão... As sociedades que não podem combinar a reverência aos seus símbolos com a liberdade de revisão hão de deteriorar-se no final".
E é de revisão que venho falando há tempos.
E para ir ilustrando isto e retomando tanta coisa que tenho diluidamente dito em crônicas, poemas e ensaios, basta lembrar primeiro a famosa frase de um bandido famoso nos anos 70 - Lúcio Flávio. Como se verá, certas frases tiradas dos muros, tiradas da boca de marginais, podem ter a mesma força das frases formuladas por intelectuais e heróis consagrados. Dizia Lúcio Flávio, cansado de ser explorado pela polícia, que o encurralava e achacava para que distribuísse com ela seus ganhos, dizia ele, querendo restabelecer os limites das ações entre a polícia e os criminosos: "Polícia é policia, bandido é bandido".
Bons tempos aqueles em que se pensava que polícia era polícia e bandido era bandido.
Bons tempos aqueles em que juiz era juiz e ladrão era ladrão. (Isto foi antes do juiz Nicolau e tantos outros).
Ilusórios tempos aqueles em que se pensava que havia limites entre o centro e a periferia, quando os revolucionários sonhavam que chegando ao poder criariam um novo Éden.
Recentemente publiquei um livro - Nós, os que matamos Tim Lopes (Ed. Expressão e Cultura), onde reuni todas as crônicas sobre violência escritas dos anos 70 até recentemente. E uma delas tinha o profético título A história de um país é também a história de seus bandidos. E propunha que se fizesse uma história dos bandidos para que através desses marginais entendêssemos melhor nosso sistema. Os marginais não são outro sistema. São parte do sistema e metonimicamente o explicam.
Que se faça um estudo comparativo entre o bandido ainda romântico Lúcio Flávio e Fernandinho Beira-mar hoje. Que se faça um estudo sobre o artesanal jogo do bicho ontem e o intrincado comércio das drogas hoje. Que se faça uma análise de como a guerrilha colombiana acabou se misturando com o narcotráfico, e se terá uma noção mais nítida de como certos "valores" se metamorfosearam.
E aqui a chamada "pergunta que não quer calar": o que a tragédia do PT tem a nos ensinar sobre isto tudo?
Devo esclarecer a essas alturas que nas entrelinhas do meu texto até agora existe um pensamento que tornarei mais explícito. Falo de estratégia epistemológica. Não se deve tentar pensar o confronto entre os anos 60 e os dias de hoje, sem um enfoque epistemológico. E esse enfoque exige que esclareçamos a partir de que ponto de vista emitíamos nossa visão do mundo ontem e a partir de que ponto de vista emitimos nossa visão de mundo hoje. É neste sentido, que ao situarmos a nossa geração como herdeira da utopia e da revolução artística e social, ao localizarmos aí uma ideologia visível e invisível que configurava nossas ações, torna-se necessário esclarecer que ideologia está a nos envolver hoje, para que saibamos criticamente nos comportar em relação à ela.
É aí que entra a questão da pós-modernidade. É aí que entra o papel da arte como metáfora ilustrativa de nossos impasses e perplexidades.
Se tomarmos os movimentos que surgiram em tomo dos anos 60: a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o Centro Popular de Cultura, o Opinião, as Neovanguardas, o Tropicalismo, o Cinema Novo, veremos que eram iniciativas programáticas, com manifestos e idéias apriorísticas. Estão dentro do espectro da modernidade, quando se acreditava na História e no sujeito histórico.
Em tomo da década de 80, configura-se mais nitidamente algo que, para uso acadêmico, passaram a chamar de pós-modernidade. Algo que teve aí o seu apogeu, representado, sobretudo, pelas artes plásticas. Quem acompanhou os debates acadêmicos ouviu insistentemente dizer sobre "a morte da arte", a "morte do sujeito", a "morte do romance", e tantas outras mortes, a exemplo da "morte da história". Tornou-se exemplar disto a afirmativa daquele pensador da CIA que decretou "a morte da história". Morte da qual, com a maior desfaçatez, depois de ter provocado polêmicas em toda parte, já se arrependeu, produzindo um outro texto dizendo que havia se equivocado.
Há algum tempo venho insistindo numa cantilena de que precisamos rever a modernidade e a pós-modernidade para iniciarmos um outro tempo ou pelo menos para purgarmos nossos erros e fantasmas de ontem. O livro Desconstruir Duchamp foi mais uma tentativa nessa direção. Ai, tomando a arte com metáfora sintomal vejo que as últimas décadas têm sido caracterizadas na arte e em nossas vidas por uma ideologia que privilegia o instantâneo no lugar do projeto; que privilegia a quantidade no lugar da qualidade; que cultua a aparência e o brilho como valores em si; que incita ao supérfluo; que oferece mais o verniz da visualidade do que a imersão na leitura; que louva a marginalidade e a falsa marginalidade; que cultua o lixo como luxo; que impõe o globalizado sobre o nacional e o regional e que cultiva o individuo narcísico sobre o social participativo. É como se a utopia se tivesse transformado numa eutopia. Mas a eutopia, aqui não no sentido grego, do "Eu" como sinônimo do "bom", mas numa cultura do "ego" enredado apenas em seus fantasmas.
Essa cultura da alienação do sujeito, da isenção de responsabilidade, onde a cópia vale tanto quanto o original tem sua metáfora magnífica no filme de Jorge Furtado - O homem que copiava. Os personagens não têm qualquer valor ético, os indivíduos são simples objetos metonímicos e o falso passa por verdadeiro. E aqui, ainda que de passagem uma anotação: não se trata de recair na antiga concepção estática e cêntrica de falso e verdadeiro.
Trata-se, isto sim, de observar que, ao mesmo tempo em que o conceito de falso e verdadeiro faz parte de uma construção conceitual, isto não significa que o falso e o verdadeiro se equivalem, que sejam valores que se anulem.
Esta cultura chamada de pós-moderna nos trouxe também essas multidões sem rumo, das quais os recentes happenings chamados flash mob foram um sintoma. Grupos de pessoas correndo daqui para ali, sem qualquer sentido, porque se decretou que a vida não tem sentido, que a arte não tem sentido, que a vida social não tem sentido, ignorando com essas afirmativas, que esse "não sentido" define já um sentido. Iludem-se ao dizer que "nada tem sentido", que podem escapar à análise. É semelhante à tolice dos que apregoaram o fim "das grandes narrativas", sem se dar conta que esse discurso sobre o fim das grandes narrativas é uma "grande narrativa" e como tal pode ser analisada, desde que se tenham elementos epistemológicos eficientes para a análise do discurso.
No campo da arte, dá-se mal entendido semelhante: tornou-se moda com a chamada "arte contemporânea" (nome totalmente impróprio) os artistas se apresentarem como "anti-artistas" ou "não-artistas". Deste modo, produzem "anti-arte" e "não-arte", mas ocupam esperta e hipocritamente o espaço que é da arte: os museus, galerias e livros de história da arte.
É um mal entendido conceitual e lingüístico. É como se uma pessoa pelo simples fato de se declarar invisível, passasse a ser invisível. A pós-modernidade, exarcebando experiências da arte conceitual, acabou enredada no ilusionismo e naquilo que Baudrillard denuncia como um jogo de simulacros.
É como se vivêssemos uma época em que o discurso se descolou totalmente de sua contraparte, o real, como se tivesse se tornado significante puro.
Isto pode ser muito estimulante para debates acadêmicos, mas em termos existenciais e sociais é uma alucinação discursiva.
Por isto, terminando, é que insisto no termo anomia. Digo "anomia" e vou ao dicionário me entender: "1. Ausência de lei ou regras; anarquia; 2. Estado da sociedade no qual os padrões informativos de conduta e crença têm enfraquecido ou desaparecido; 3. Condição semelhante em um indivíduo, comumente caracterizada por desorientação pessoal, ansiedade e isolamento social; 4. Med. perda da faculdade de dar nome aos objetos ou coisas ou de reconhecer e lembrar seus nomes".
Em muitos casos, chegamos a um estágio de anomia ética e estética. A vida artística e a vida política e social mostram isto. Mas entrever essa anomia não significa ficar paralisado diante dela. Há instrumentos para analisá-la, diagnosticá-la. Daí que tenho proposto insistentemente (vejo outros intelectuais no exterior na mesma linha), uma revisão do que foi a modernidade e a pós-modernidade, como uma forma de, nomeando, configurar o sentido até mesmo do não-sentido.
Chegando ao fim desta comunicação, talvez pudesse terminar com palavras que usei recentemente ao participar de um seminário em Santiago do Chile, patrocinado pelo CEPAL, onde havia uma preocupação semelhante a esta aqui: queria-se entender os caminhos e descaminhos percorridos pelo Brasil e pelo Chile entre 1960 e hoje. Ali, evidentemente, tracei outro percurso de idéias. Mas terminei dizendo que o desafio comum que vejo para os intelectuais e artistas chilenos e brasileiros e nitidamente este: proceder à revisão urgente não apenas da década de 60, mas da modernidade e da pós-modernidade, não com os pés no retomo ao século XIX, mas com os pés no século XXI. Uma revisão impiedosa, que sendo uma autocrítica, seja um enfrentamento com os ídolos de ontem, porque a maior homenagem que se pode fazer a um contestador de ontem é contestá-lo hoje.
Com efeito, se olharmos a história da arte e do pensamento do século XX teremos, de certa forma, uma lúgubre imagem. Aí se falou exaustivamente da "morte da arte", da "morte da poesia", da "morte do romance", da "morte do homem", da "morte do sujeito", da "morte da história", da "morte de Deus". Enfim, essa seqüência de mortes nos convence que o século XX é um cemitério, um vasto cemitério.
Façamos a autópsia desse século. Procuremos a "causa mortis" de tantas idéias e ideologias. A ordem é recomeçar. Já dizia Nietzsche, o genial suicida e coveiro de tantas idéias, que só pode haver ressurreição onde houver morte. Não se trata, portanto, de regressar, mas de recriar algo novo que com o novo século se inicia. Mas para que isto se faça é preciso fazer o


EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX
Affonso Romano de Sant’Anna

1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
Mundiais e milhares
De outras pequenas
E igualmente bestiais.


2. Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3. Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux-vômica

4. Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5. Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
Que o vento levou.

6. Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7. Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro
a custo aproximou.

8. Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

9. Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno.
Século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10. Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para lugar nenhum.