segunda-feira, 29 de março de 2010

O mercado de arte, a arte do mercado e o vale-tudo, por Mazé Leite

Luciano Trigo, jornalista e estudioso das artes plásticas, lançou, no final de 2009, o livro “A Grande Feira – uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea”. Em entrevista exclusiva, Luciano fala dos motivos que o levaram a escrever esse livro, que levanta questões muito interessantes para o debate sobre a arte atual.

Há algum tempo foi noticiado através da imprensa, que a Prada – a famosa casa de design de moda – começou a construir em Milão, Itália, um Museu de Arte Contemporânea com mais de dez mil metros quadrados de área. A mesma marca que inspirou livro e filme “O Diabo Veste Prada”, cuja presidente, Miuccia Prada, também possui uma grande coleção de obras de arte, será a partir de 2012 (ano previsto para inauguração do Museu) o mais novo paraíso de curadores, marchands, colecionadores e negociantes do mercado da arte. Um templo da arte contemporânea a mais, onde rezam alguns dos ícones da nova vedete do mercado de ações: a arte visual.
Luciano Trigo, jornalista brasileiro, carioca, inquieto com a observação desse estado atual das artes no Brasil e no mundo, desde 2007 começou, corajosamente, a questionar o que está sendo feito e o que está sendo visto em museus e bienais de arte contemporânea. Essa inquietação levou-o a escrever o livro A Grande Feira – uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea, com o objetivo de verificar “o peso da herança da arte conceitual, a relação entre arte e mercado e o significado da pós-modernidade na arte”.
“Acompanhando as exposições, ao longo dos anos – diz Luciano na entrevista exclusiva – eu comecei a sentir uma certa inquietação diante do que me parecia uma reciclagem sem fim de linguagens e procedimentos do passado, mas fora de seu contexto original. Comecei a pesquisar e refletir sobre o assunto e publiquei os primeiros textos no meu blog, em 2007”. Luciano diz que as reações foram tão fortes – de todos os lados – que ele sentiu que “tinha tocado num tema importante” e decidiu aprofundar sua investigação, o que resultou no livro.
A Grande Feira, um livro repleto de exemplos concretos sobre a relação entre os artistas, suas obras e o mercado, faz uma abordagem muito boa sobre o que Luciano Trigo chama de “o sistema da arte”, que inclui mercado de ações, galeristas, curadores, marchands, mídia, e, no final dessa cadeia, o artista plástico absorvido por esse sistema, aquele que tem espaço para expor em galerias e museus da moda.
Luciano, fazendo uma retrospectiva histórica da arte, diz que o legado das grandes tradições artísticas do passado foi desprezado “ou pelo menos esvaziado” pelos setores que representam a arte contemporânea. Ele diz que esse processo teria começado simultaneamente à ascensão do modelo neoliberalizante de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, no início dos anos 80. Isso que ele chama de “onda politicamente conservadora” que se espalhou pelo mundo, beneficiada pela queda do Muro de Berlim e pela derrocada dos países socialistas, trouxe consigo uma nova visão do papel da arte e do artista na sociedade. E trouxe consigo também a tese do “fim da história”.
“A tese neoliberal do fim da História – continua Luciano na entrevista – tem um correspondente na arte pós-moderna, que é a tese do fim da Arte, ou do fim da História da Arte, que é defendida por Arthur Danto e Hans Belting. Basicamente, eles entendem que a Arte deixou de seguir um caminho evolutivo, como acontecia na modernidade, e que hoje a gente vive um pluralismo baseado, justamente, na releitura, muitas vezes irônica, de movimentos do passado. Este é o pano de fundo teórico da produção artística contemporânea.”
Essa releitura, nas artes plásticas, de movimentos artísticos do passado, movimentos esses que eram fruto do profundo entrelaçamento entre arte e vida, hoje está despida de sentido e a arte cada vez mais se aproxima dos universos da moda, da publicidade e das imagens comerciais da cultura de massa. O falso pluralismo apregoado hoje por esse sistema, esconde o império da arte conceitual, que num certo sentido é a matriz da arte contemporânea, como ele explica no livro.
A capa do livro de Luciano, retrata uma obra conceitual do inglês Damien Hirst, um tubarão morto imerso em formol, vendido em 2004 por 12 milhões de dólares. Hirst é esse novo modelo de “artista” do mercado. Conta com uma equipe de mais de cem assistentes, que executam suas obras, pois ele raramente o faz com suas próprias mãos. Até mesmo as telas que assina, são pintadas por seus assistentes. “Ou seja, do artista não se espera mais que crie, apenas que assine”, diz Luciano.
O mesmo vale para o aperfeiçoamento técnico do artista, pois o desenho perdeu importância. Hoje, cada vez mais impera a arte que Ferreira Gullar chama de “Caninha 51”, ou a “arte da boa idéia”. E Luciano acrescenta que pela lógica do mercado da arte atual, qualquer um pode se dizer artista “em função da eliminação de pré-requisitos ligados à técnica, ao aprendizado, à experiência e ao talento”. Arte é qualquer coisa que o artista defina como arte, o reino do vale-tudo.
Ele diz na entrevista: “Eu entendo que a arte virou um grande clube, e que sua lógica se aproximou da lógica da moda e da indústria do espetáculo. Não há contrapoderes dentro desse sistema, porque a crítica de arte acabou. Há uma grande comunhão de interesses entre uma elite de artistas, as instituições e o mercado”.
No começo do século XX, ricas experiências estéticas resultaram nos vários “ismos” que se condensaram no modernismo. Foi uma época de grande engajamento dos artistas na vida de seus países, além de grande produção teórica e muita experimentação estética, coisa que não se vê nesses tempos de neoliberalismo globalizante. A arte figurativa, e até mesmo a pintura como uma expressão plástica, tem sido considerada, dentro das escolas de arte atuais, como coisa do passado, esquecendo-se eles de que o figurativismo, onde se inclui a arte realista, sempre esteve presente mesmo nos momentos de predominância da arte abstrata.
Um dos argumentos que essa nova classe de artistas e seus aliados têm feito é de que a arte sempre esteve atada ao sistema, desde a Idade Média. É verdade, afirma Luciano, e se passaram mais de duzentos anos para que a arte acadêmica, instituída pelo estadista francês Jean-Baptiste Colbert e pelo pintor Charles Lebrun, fosse questionada. “Com Gustave Courbet – diz Luciano em seu livro – a arte se libertou não apenas de imposições formais como também da subordinação estrita a esferas alheias, como a religião e a política”. Courbet foi o iniciador do Realismo nas artes plásticas, no século XIX.
Hoje a situação é radicalmente diferente. Segundo Luciano, até mesmo o artista “que se julga de esquerda, alimenta e se beneficia de mecanismos selvagens de especulação capitalista, numa subordinação total à lógica do mercado globalizado e à dinâmica da mídia e do espetáculo”. A arte de hoje é a arte domesticada pelo dinheiro e pelas estratégias de marketing. O mercado, hoje, exerce, então, o mesmo papel que antes era exercido pela Academia, que ditava as regras: o deus-mercado determina o que tem ou não valor artístico.
Voltando a falar sobre esse pensamento predominante em meio a uma crítica inexistente, Luciano afirma: “Tudo isso acontece com o beneplácito das elites intelectuais, que demonstram uma receptividade acrítica sem precedentes, ao que lhes é vendido como arte”, embora a saída, para ele, comece exatamente pela abertura do “debate transparente sobre o estado atual da arte”.
No Brasil, esse debate ainda sofre muito preconceito. Até o momento, poucos foram os que ousaram discordar da opinião predominante, como Ferreira Gullar, Afonso Romano de Sant'Anna e o próprio Luciano Trigo. Afonso Romano, que além de crítico de arte é poeta, como também o é Ferreira Gullar, disse, há algum tempo, que não é chamado a dar palestras ou participar de seminários sobre arte em muitas instituições brasileiras. A elas não interessa esse debate, porque estão atreladas a esse sistema.
Sobre isso, Luciano disse na entrevista: “Essas reações emocionais - e às vezes, raivosas - a esses questionamentos mostram que o nível da reflexão sobre arte no Brasil está muito ralo. É um raciocínio binário, que separa as pessoas em amigas e inimigas, e qualquer pensamento independente é muito mal recebido. Na França e nos Estados Unidos, são inúmeros os autores que criticam as regras da arte hoje.” Mas ressalta que muitos artistas, professores e estudantes de arte brasileiros, receberam seu livro de forma muito positiva.
Sobre o papel da arte e do artista no mundo de hoje, Luciano falou que o artista, “ao aderir incondicionalmente a um sistema dominado por interesses de mercado” faz com que seu papel e o da própria arte esteja perdendo relevância. “É claro que dá para tentar negar isso, embrulhando com um discurso sofisticado e pretensioso cada artista novo que aparece - e a cada ano é preciso que surjam novos nomes, como na música pop.” Com um tipo de arte tão assemelhado à moda, é compreensível que o artista famoso hoje, seja o ofuscado de amanhã... Que papel representa esse tipo de arte narcisista, voltada para uma meia dúzia de “iluminados”, que não dialoga com o público?
Luciano Trigo lembra também em A Grande Feira, que a passagem da arte moderna para a arte contemporânea não se deu por uma simples coincidência. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, houve um “deslocamento do polo artístico hegemônico da Europa para os Estados Unidos”.
Mas isso não se deu de forma passiva. Pelo contrário, os Estados Unidos, através da CIA, orquestrou uma campanha que alcançou os principais países europeus, e mesmo a América Latina, com a finalidade de apresentar ao mundo uma nova arte, que começou com o Expressionismo Abstrato. Depois incentivaram artistas da Action Painting como Jackson Pollock, o minimalismo, a Pop Art e a arte conceitual. Essa campanha está descrita pormenorizadamente em um outro livro, “Quem Pagou a Conta?”, da jornalista inglesa Frances Stonor Saunders.
A arte como expressão de uma boa idéia (Caninha 51), na verdade repete à exaustão o ato conceitual de Marcel Duchamp com seu famoso urinol, ou as milhares de performances, das mais bizarras às mais perversas. Essa arte da boa ideia não sobrevive sem um discurso, chegando-se ao absurdo de que para cada obra conceitual seja criado um palavreado acadêmico, o que obriga o público de arte a uma situação no mínimo cômica: ao invés de “contemplar” a obra de arte, ele precisa ler o texto explicativo da obra. E coitado daquele que não entender...
Voltando à entrevista, Luciano conclui: “O debate que eu proponho não é sobre a qualidade estética da arte contemporânea, mas sobre a sua lógica interna, as suas regras ocultas, a sua rede de relacionamentos e poder. Acho que levantei questões interessantes no livro, e as reações a ele mostram que existia uma demanda reprimida por esse debate no Brasil.”Que, esperamos, seja ampliado ao máximo. Em prol da Arte.

sábado, 13 de março de 2010

Vale-tudo na arte?, por Ivan Padilha

O jornalista Luciano Trigo começou a tecer suas críticas ao mercado de arte no blog Máquina de Escrever, em 2007. As respostas de leitores e internautas o levaram a aprofundar o debate no livro A Grande Feira, lançado no final do ano passado. Confira a seguir a entrevista com Trigo.

Como se pode medir a qualidade de uma obra de arte contemporânea?
A arte conceitual, as performances, as instalações e outros tipos de produção artística surgiram nos anos 60 e 70 como formas de contestação ao mercado e às instituições. Foram as últimas vanguardas modernas, um movimento autêntico de expansão e de libertação do campo artístico. Quando essas práticas foram reapropriadas e enquadradas pelo mercado e pelas instituições, a partir do final dos anos 70, isso gerou um problema: obras por natureza efêmeras ou mesmo imateriais, em suma, obras anti-mercado, passaram a ser codificadas segundo uma lógica ligada à arte como mercadoria. O resultado são instalações que pedem espaço e ar livre, ou interação com a vida cotidiana, apertadas em salas de galerias, ou obras feitas de material perecível indo parar nas reservas técnicas dos museus, de onde nunca mais vão sair. Houve uma refetichização do objeto de arte aplicada a uma arte de matriz conceitual, o que é uma contradição em termos. E houve também uma reafirmação do ideal romântico do artista como gênio iluminado, agora na condição de estrela pop, de pose transgressora mas muito bem-sucedido. No exterior isso é debatido claramente, mas no Brasil ainda é tabu.
Uma galerista disse que, como o mercado brasileiro de arte ainda é pequeno quando comparado aos mercados europeu e americano, não há espaço para obras de baixa qualidade. Você concorda?
Isso não faz muito sentido. De qualquer forma um dos problemas da arte hoje é que uma obra se torna relevante pela mídia que recebe e pela sua cotação no mercado, e apenas por isso. São dois fatores altamente manipuláveis. Quem daria atenção a um tubarão mergulhado em formol, obra do Damien Hirst, se ele não fosse apresentado pela mídia como uma grande obra e se não fosse vendido por milhões de dólares? Ninguém, pelo simples fato de que qualquer pessoa pode fazer coisas parecidas - o que as pessoas comuns não têm é um estrategista marqueteiro por trás, como o Hirst teve o Charles Saachi, que inventou toda uma geração de artistas. Como não existe mais a crítica de arte como contrapoder, não há mais a possibilidade de discussão sobre o valor estético da obra em si, nem interessa em que haja, então falar de qualidade ficou problemático. A crítica abriu mão de julgar, seu papel hoje é endossar os artistas que o sistema elege.
Seu livro está centrado principalmente em exemplos de fora. Você citaria artistas brasileiros cujo sucesso tem por base o marketing exagerado e a especulação em detrimento da qualidade?
Mesmo sem dar quase nenhum exemplo brasileiro, o livro A Grande Feira já me fez colecionar olhares tortos, mesmo entre artistas que aprecio, então prefiro não citar nomes. Mas posso citar, sim, artistas que reagiram de forma positiva ao debate que o livro provoca, como Adriano de Aquino, Ivald Granato, Iran do Espirito Santo e Antonio Veronese, entre outros, além de Gianguido Bonfanti e Gonçalo Ivo, que escreveram textos de apresentação. O problema é que no Brasil a reflexão sobre a arte ficou tão rala que as pessoas reagem a qualquer questionamento com um raciocínio binário, que classifica como reacionário quem critica e como aliado quem engole qualquer coisa. É a lógica do compadrio, da rede de relacionamentos. Tanto que o comentário que mais ouço é que meu livro é "corajoso". Será que chegamos num ponto em que é preciso ter coragem para refletir sobre a arte?

Obra de Cildo Meireles
Qual sua opinião sobre os artistas brasileiros contemporâneos, como Cildo Meireles, Tunga, Beatriz Milhazes, Ernesto Neto e Adriana Varejão?
É importante ficar claro que A Grande Feira não é um livro de crítica de arte, mas uma investigação, entre jornalística e sociológica, sobre as regras da arte, sobre o sistema da arte hoje, isto é, sobre o conjunto de práticas, valores e instituições que determinam que tipo de arte será valorizada e reconhecida. Então meu gosto pessoal não é relevante para a discussão que proponho. Dito isso, acho o Cildo Meireles fundamental, talvez o mais importante artista brasileiro vivo - especialmente na sua produção dos anos 60 e 70, que combina questões políticas e sociais com reflexões sobre a própria natureza da arte. O Ernesto Neto e a Adriana Varejão, que são da minha geração, têm obras interessantes, o Neto pela plasticidade, a Adriana pelo diálogo inteligente com a Arquitetura e a História. Os dois, por outro lado, se projetaram já num contexto pós-moderno, de dominação da arte por uma lógica dominada por razões de mercado, aproximando- se da moda e da indústria do espetáculo. É esse contexto que eu coloco em questão, não a obra deste ou daquele artista. Já do Tunga gosto de alguma coisa da produção mais antiga, como as xifópagas capilares, mas sua produção recente me parece uma bobagem. Por exemplo, uma performance com sete bailarinos, 40 estudantes de biologia, 600 rãs, 2 mil girinos, 40 mil moscas e milhares de larvas. Nessa altura do campeonato, qual a relevância disso? Aí se cria uma aura em torno da obra, como se qualquer coisa produzida pelo Tunga fosse grande arte. Muitas vezes um artista acaba criando um personagem de si mesmo e não consegue mais sair dele: passa a acreditar naquilo que o sistema diz que ele é. Já os quadros da Beatriz Milhazes são bonitos, mas repetitivos, variações sobre o mesmo tema.
Mais de um galerista com quem conversei citou Romero Britto como exemplo de artista que se vale de auto-promoção, já que ele não tem trabalhos em museus e nem participa de feiras de arte (o sucesso de sua obra seria, portanto, um modismo). Você concorda com esse exemplo?
Eu nem gosto da obra dele, mas acho engraçado criticarem o Romero Britto. Em nome de quê? Ironicamente, o fato de ele não estar nos museus e nas feiras faz dele hoje um transgressor. A mainstream da arte hoje são os artistas, geralmente de matriz conceitual, que enriquecem reproduzindo procedimentos de 50 ou até 90 anos atrás. Esta é a arte acadêmica de hoje, porque é a arte que se ensina nas escolas de arte. Recebi dezenas de mensagens de estudantes do Brasil inteiro relatando que não se ensina mais técnica, nada, nas escolas. Essa situação é muito grave, é todo um conhecimento que se perde. O estudante entra hoje na escola de artes visuais e aprende que o "quente" é fazer um bigode com creme de barbear no rosto e intitular a obra "Tributo a Frida Kahlo", como faz a Sarah Maple, a nova estrela da arte britânica. Qualquer adolescente faz isso, é uma coisa velha, de 90 anos atrás. Marcel Duchamp designou a roda de bicicleta como obra de arte em 1913, e o urinol em 1917. Até quando vamos considerar isso contemporâneo?
Você diz em seu livro que os críticos hoje seriam espectadores, e não mais críticos. As críticas, ou matéria a respeito de obras e exposições que continuam sendo publicadas em revistas e jornais, hoje, têm maior ou menor importância para a promoção do artista do que em décadas passadas?
Os textos que ainda saem na imprensa são, quase sempre, vagos e descritivos, e muitas vezes apoiados em releases. Um crítico, hoje curador, já disse textualmente que o papel da crítica deixou de ser julgar e passou a ser testemunhar. Para mim este foi o atestado de óbito da crítica de arte. Para testemunhar não é preciso ser crítico. O crítico deveria funcionar como um contrapoder no sistema da arte, fazendo um julgamento esclarecido e bem informado sobre a obra de arte. Sem esse contrapoder, prevalecem os interesses comerciais e estratégicos dos donos do poder na arte.

quarta-feira, 10 de março de 2010

4X Brasil

Affonso Romano de Sant' Anna

No Palácio do Planalto em 2005 estão alguns dos guerrilheiros dos anos 60 e 70.
No Congresso Nacional em 2005 estão vários políticos que nos anos 60 caíram na clandestinidade.
O Presidente do Brasil em 2005 é um metalúrgico que nos anos 70 era líder sindical.
Estou começando a dizer o seguinte: a periferia chegou ao centro.
Estou começando a dizer o seguinte: os marginais de ontem chegaram ao poder.
Estou começando a dizer o seguinte: houve um giro de 360º nos acontecimentos e em nossas perspectivas. Somos num certo sentido uma geração privilegiada porque conseguiu ver e viver o verso e o reverso da medalha. Portanto, urge confrontar épocas e rever toda uma trajetória para nos perguntarmos: "o que aprendemos até hoje?”¹.
Em 2003, Mick Jagger - o debochado cantor líder dos Rolling Stones foi condecorado "cavaleiro" pelo príncipe Charles da Inglaterra. Aconteceu com a extravagante banda inglesa o mesmo que ocorreu com os Beatles que, tendo desencadeado uma revolução na música e nos costumes, antes, também foram condecorados pela rainha. Naquele tempo, dizia-se que os Rolling Stones estavam à esquerda dos Beatles. No entanto, acabaram igualmente no Palácio de Buckingham. O fato de Mick Jagger comparecer à cerimônia da condecoração de tênis não o afirma a como um indivíduo da "margem", mostra apenas que o tênis também foi coroado.
Lanço aqui aquilo que em propaganda se chama de "teaser" - uma frase solta, um slogan prenunciando, algo que vem depois numa maciça campanha publicitária. Ou seja: poderia intitular esta comunicação assim: Da utopia à anomia. Ou para tomar o texto academicamente mais impressionável e aceito: Da utopia da modernidade à anomia da pós-modernidade.
Mas começo falando de nossos iguais, de nós que viemos dos anos 60 e conseguimos, mal grado os obstáculos e nós mesmos, chegar até aqui. Muitos partiram antes. Como disse num poema:

"Não era isto o combinado.
Eles estão se adiantando, os meus amigos.
Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar"².

Estou me lembrando, por exemplo, do mítico Betinho, o sociólogo, o irmão do Henfil, o organizador do programa de combate à fome. Mas estou me lembrando do Betinho que era meu colega em Belo Horizonte nos anos 60, quando eu cursava a Faculdade de Filosofia da UFMG e ele a recém criada Faculdade de Ciências Econômicas, de onde saíram vários guerrilheiros, inclusive o saudoso Juarez Brito, com quem conversava sempre no bandeijão da universidade e que virou lugar-tenente de Lamarca e morreu metralhado ou suicidado no Rio.
1. Título de uma aula inaugural dada em meia dúzia de universidade na década de 90, analisando criticamente o século XX.
2 Eles estão se adiantando - ln O lado esquerdo do meu peito Ed. Rocco, 1992, Rio.
Betinho é também uma metáfora do que comecei a dizer quando falei dos guerrilheiros no Palácio do Planalto, do presidente hoje que era líder sindical ontem, quando falei do rock enquanto marginalidade e poder.
O Betinho que nos anos 80 voltou de um longo exílio em vários paises, criou o IBASE lançou essa mobilização para combater a fome, foi nos anos 60 e 70 um maoísta, que acreditava na revolução como forma de modificar de vez a história. Numa biografia de Betinho feita por Ricardo Gontijo - e para a qual fiz a orelha - há estórias muito pedagógicas, politicamente, sobre sua trajetória de um lado ao outro da experiência humana.
Não é só o Betinho. Olhem essas ONGs espalhadas pelo país. Quantas delas são geridas, quantas foram criadas por ex-guerrilheiros de ontem?
Teria ocorrido um giro de 360 graus da revolução ao assistencialismo?
A mudança estrutural de ontem teria sido substituída pela atuação apenas pontual? Interessa-me menos qualificar essa modificação do que assinalar formalmente a mudança, uma mudança estrutural de comportamento e visão do mundo.
Ao dizer isto, estou já me inclinando noutra direção, direção mais esclarecedora do que está embutido no que estou tentando desdobrar como raciocínio. E o que vou dizer, poderia ser resumido nesta frase: viemos de uma geração de utópicos.
Digo isto e lembro aquela outra frase que lancei anteriormente, meio aleatoriamente, quando disse que poderia intitular essa apresentação de: Da utopia à anomia.
Começo então pela utopia.
Nossa geração foi criada dentro de uma ideologia utópica: a Modernidade. A Modernidade, aliás, como o Romantismo, são ideologias siamesas, utópicas. Romantismo e Modernidade acreditavam na História com H maiúsculo. Ou seja, na história segundo a visão não apenas marxista, hegeliana e cristã, mas numa História que, para usar uma expressão que tenho empregado em vários textos, caminha em sentido de flecha. Ela parte de um determinado lugar para chegar a outro. A História teria um desenho linear. Sai-se do Gênesis para o Apocalipse, onde nos espera, na catástrofe, a redenção. Os revolucionários marxistas colocaram dentro da catástrofe (ou conflito de classes) a criação do estado dialético, onde teríamos a beatitude seráfica dos eleitos da História.
Neste sentido, a arte moderna, que irrompe mais claramente com os manifestos literários no princípio do século XX, alardeia a utopia, o progresso onde a máquina estaria a serviço do artista. (Alguns foram até mais radicais, o homem é que estaria a serviço da máquina, como foi satirizado por Chaplin em Tempos Modernos). A mitificação do progresso, constituído como motor propulsivo da história foi tanta, que para fazer logo uma paródia, e pela paródia, como pela charge, traçar melhor o perfil do que estamos dizendo, no Brasil, essa ideologia progressista da modernidade fez com que em qualquer vilazinha se encontre uma "Mercearia Progresso", "Padaria Progresso", "Alfaiataria Progresso". Enfim, isto estava já no emblema de nossa bandeira positivista: "Ordem e Progresso". (E ler os nomes de ruas, nomes de lojas, enfim as inscrições nos grafitos urbanos é desconstruir certa ideologia). Com efeito, os positivistas também modernos no seu tempo achavam que a história, marchava em linha reta. Começava com estado Teocrático (no mundo primitivo) e terminava com o Estado Positivista, onde a razão seria a nova religião, não se sabendo muito claramente onde começava uma e terminava a outra.
Dois exemplos tautologicamente exemplares: Maiakovski pela esquerda e Ezra Pound pela direita, personagens da vanguarda e do modernismo, ambos tinham uma visão utópica da história. No modernismo brasileiro, de novo Plinio Salgado, que antes de ser líder integralista era escritor pela direita, ou Oswald de Andrade e Jorge Amado pela esquerda, viveram essa utopia divergente.
Pois os anos 60 foram um período de recrudescimento utópico. A revolução cubana arrebatou toda a nossa geração. Até filósofos que deveriam ser mais sensatos, como Sartre, deixaram-se empolgar. No caso de Sartre, foi mais grave e radical, pois foi também maoísta.
E foi neste contexto que os que estão participando das rodadas dessa discussão surgiram. Lembro-me de Fernando Gabeira, por exemplo, no Jornal do Brasil, para onde me chamou para trabalhar com ele no Departamento de Pesquisa, em 1967, antes de ele cair na ilegalidade e participar do seqüestro do embaixador Elbrick. Lembro-me de tê-lo ido visitar na cadeia depois dos ferimentos e da tortura. E com ele tenho continuado esse diálogo textual e literário desde seu retomo, quando publicou a autocrítica em O que é isso, companheiro?, sobre o qual discorri no ensaio É isso aí, companheiro³.
Lá, naqueles anos e naquele jornal, também estava Nelson Motta (outro colega nestes debates), participando e ajudando a parir o movimento tropicalista e já participando do histórico programa Flávio Cavalcanti na TV Tupi. E Luiz Carlos Maciel, diretor de teatro, já ia se configurando como guru, editando o jornal Rolling Stones, escrevendo livros não apenas sobre Sartre, mas tomando Marcuse e Norman O'Brown como seus gurus, aplicando-se a expandir o underground e outras formas de utopias marginais.
De minha parte, fazendo agora um depoimento, depois das experiências com os grupos de vanguarda e de ter participado do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, fui lecionar nos Estados Unidos; e, na Califórnia, durante dois anos, vi de perto e vivi a utopia da cultura hippie, participei dos love-in dos teach-in, das marchas contra a guerra no Vietnã, seja em São Francisco ou em Los Angeles. Acho que posso até botar em meu curriculum que assisti a um concerto dos Beatles em Los Angeles...
Sem complicar muito, como seria lícito fazer em linguagem acadêmica, quando se começa a falar de modernidade, criando uma parábola que sintetize vários pensamentos aqui embutidos, eu tomaria uma frase emblemática daquela época para começar a contrastar com o que ocorre nos nossos dias, esses dias em que uma insidiosa anomia parece nos grudar às sem-saídas do presente.
Daquelas frases de 68 inscritas nos muros de Paris, tomo uma: "É proibido proibir", Como nos fascinava! Era a liberdade absoluta, uma resposta, na Europa, ao peso da tradição que engessava os estudantes na universidade e no sistema; no Brasil, na canção de Caetano num daqueles festivais, uma reação à censura imposta crescentemente desde 1964.
Essa frase lida hoje tem algumas lições a nos dar. Examinando-a do lugar onde estamos, essa "É proibido proibir" deixa de ser uma frase libertária e utópica e passa a ser uma frase igualmente autoritária, posto que ao enfatizar o "proibir", ainda que paradoxalmente, está reafirmando um centro, uma verdade única. É Uma frase tão contraditória quanto aquela fórmula que vulgarmente se aplica à teoria da relatividade: "Tudo é relativo". Então, podemos paradoxalmente raciocinar: a afirmativa "tudo é relativo" é uma afirmativa absoluta, absolutista, que nega a si mesma, tanto como a frase dos rebeldes jovens de 68 que, ao proibir a proibição remete gostosa e idi1icamente para o paraíso, mas pode desencadear também a anomia, a entropia e o impasse.

3 Política e paixão. Ed. Rocco, 1984, Rio.

No contexto em que estamos, quarenta anos depois, descobrimos que ao contrário de "é proibido proibir", é também legal dizer "Não", dizer "Basta". Diria, correndo todos os riscos de ser mal interpretado, que esta é uma das diferenças fundamentais entre aquele ontem e o este hoje. Não é verdade que existe liberdade sem limites. Não é verdade que existe revolução permanente. Não é verdade que tudo é arte ou que arte seja qualquer coisa que qualquer pessoa chame de arte. Enfim, não é verdade que qualquer coisa é igual a.qualquer coisa. Não é verdade que uma sociedade, que uma cultura possa viver sem "valores" e sem um "cânone”: O que não significa que "valores" e "cânone" tenham que ser verdades pétreas. Como disse Whitehead: "a arte de uma sociedade livre consiste primeiro: em manter um código simbólico; e, depois em não temer a revisão... As sociedades que não podem combinar a reverência aos seus símbolos com a liberdade de revisão hão de deteriorar-se no final".
E é de revisão que venho falando há tempos.
E para ir ilustrando isto e retomando tanta coisa que tenho diluidamente dito em crônicas, poemas e ensaios, basta lembrar primeiro a famosa frase de um bandido famoso nos anos 70 - Lúcio Flávio. Como se verá, certas frases tiradas dos muros, tiradas da boca de marginais, podem ter a mesma força das frases formuladas por intelectuais e heróis consagrados. Dizia Lúcio Flávio, cansado de ser explorado pela polícia, que o encurralava e achacava para que distribuísse com ela seus ganhos, dizia ele, querendo restabelecer os limites das ações entre a polícia e os criminosos: "Polícia é policia, bandido é bandido".
Bons tempos aqueles em que se pensava que polícia era polícia e bandido era bandido.
Bons tempos aqueles em que juiz era juiz e ladrão era ladrão. (Isto foi antes do juiz Nicolau e tantos outros).
Ilusórios tempos aqueles em que se pensava que havia limites entre o centro e a periferia, quando os revolucionários sonhavam que chegando ao poder criariam um novo Éden.
Recentemente publiquei um livro - Nós, os que matamos Tim Lopes (Ed. Expressão e Cultura), onde reuni todas as crônicas sobre violência escritas dos anos 70 até recentemente. E uma delas tinha o profético título A história de um país é também a história de seus bandidos. E propunha que se fizesse uma história dos bandidos para que através desses marginais entendêssemos melhor nosso sistema. Os marginais não são outro sistema. São parte do sistema e metonimicamente o explicam.
Que se faça um estudo comparativo entre o bandido ainda romântico Lúcio Flávio e Fernandinho Beira-mar hoje. Que se faça um estudo sobre o artesanal jogo do bicho ontem e o intrincado comércio das drogas hoje. Que se faça uma análise de como a guerrilha colombiana acabou se misturando com o narcotráfico, e se terá uma noção mais nítida de como certos "valores" se metamorfosearam.
E aqui a chamada "pergunta que não quer calar": o que a tragédia do PT tem a nos ensinar sobre isto tudo?
Devo esclarecer a essas alturas que nas entrelinhas do meu texto até agora existe um pensamento que tornarei mais explícito. Falo de estratégia epistemológica. Não se deve tentar pensar o confronto entre os anos 60 e os dias de hoje, sem um enfoque epistemológico. E esse enfoque exige que esclareçamos a partir de que ponto de vista emitíamos nossa visão do mundo ontem e a partir de que ponto de vista emitimos nossa visão de mundo hoje. É neste sentido, que ao situarmos a nossa geração como herdeira da utopia e da revolução artística e social, ao localizarmos aí uma ideologia visível e invisível que configurava nossas ações, torna-se necessário esclarecer que ideologia está a nos envolver hoje, para que saibamos criticamente nos comportar em relação à ela.
É aí que entra a questão da pós-modernidade. É aí que entra o papel da arte como metáfora ilustrativa de nossos impasses e perplexidades.
Se tomarmos os movimentos que surgiram em tomo dos anos 60: a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o Centro Popular de Cultura, o Opinião, as Neovanguardas, o Tropicalismo, o Cinema Novo, veremos que eram iniciativas programáticas, com manifestos e idéias apriorísticas. Estão dentro do espectro da modernidade, quando se acreditava na História e no sujeito histórico.
Em tomo da década de 80, configura-se mais nitidamente algo que, para uso acadêmico, passaram a chamar de pós-modernidade. Algo que teve aí o seu apogeu, representado, sobretudo, pelas artes plásticas. Quem acompanhou os debates acadêmicos ouviu insistentemente dizer sobre "a morte da arte", a "morte do sujeito", a "morte do romance", e tantas outras mortes, a exemplo da "morte da história". Tornou-se exemplar disto a afirmativa daquele pensador da CIA que decretou "a morte da história". Morte da qual, com a maior desfaçatez, depois de ter provocado polêmicas em toda parte, já se arrependeu, produzindo um outro texto dizendo que havia se equivocado.
Há algum tempo venho insistindo numa cantilena de que precisamos rever a modernidade e a pós-modernidade para iniciarmos um outro tempo ou pelo menos para purgarmos nossos erros e fantasmas de ontem. O livro Desconstruir Duchamp foi mais uma tentativa nessa direção. Ai, tomando a arte com metáfora sintomal vejo que as últimas décadas têm sido caracterizadas na arte e em nossas vidas por uma ideologia que privilegia o instantâneo no lugar do projeto; que privilegia a quantidade no lugar da qualidade; que cultua a aparência e o brilho como valores em si; que incita ao supérfluo; que oferece mais o verniz da visualidade do que a imersão na leitura; que louva a marginalidade e a falsa marginalidade; que cultua o lixo como luxo; que impõe o globalizado sobre o nacional e o regional e que cultiva o individuo narcísico sobre o social participativo. É como se a utopia se tivesse transformado numa eutopia. Mas a eutopia, aqui não no sentido grego, do "Eu" como sinônimo do "bom", mas numa cultura do "ego" enredado apenas em seus fantasmas.
Essa cultura da alienação do sujeito, da isenção de responsabilidade, onde a cópia vale tanto quanto o original tem sua metáfora magnífica no filme de Jorge Furtado - O homem que copiava. Os personagens não têm qualquer valor ético, os indivíduos são simples objetos metonímicos e o falso passa por verdadeiro. E aqui, ainda que de passagem uma anotação: não se trata de recair na antiga concepção estática e cêntrica de falso e verdadeiro.
Trata-se, isto sim, de observar que, ao mesmo tempo em que o conceito de falso e verdadeiro faz parte de uma construção conceitual, isto não significa que o falso e o verdadeiro se equivalem, que sejam valores que se anulem.
Esta cultura chamada de pós-moderna nos trouxe também essas multidões sem rumo, das quais os recentes happenings chamados flash mob foram um sintoma. Grupos de pessoas correndo daqui para ali, sem qualquer sentido, porque se decretou que a vida não tem sentido, que a arte não tem sentido, que a vida social não tem sentido, ignorando com essas afirmativas, que esse "não sentido" define já um sentido. Iludem-se ao dizer que "nada tem sentido", que podem escapar à análise. É semelhante à tolice dos que apregoaram o fim "das grandes narrativas", sem se dar conta que esse discurso sobre o fim das grandes narrativas é uma "grande narrativa" e como tal pode ser analisada, desde que se tenham elementos epistemológicos eficientes para a análise do discurso.
No campo da arte, dá-se mal entendido semelhante: tornou-se moda com a chamada "arte contemporânea" (nome totalmente impróprio) os artistas se apresentarem como "anti-artistas" ou "não-artistas". Deste modo, produzem "anti-arte" e "não-arte", mas ocupam esperta e hipocritamente o espaço que é da arte: os museus, galerias e livros de história da arte.
É um mal entendido conceitual e lingüístico. É como se uma pessoa pelo simples fato de se declarar invisível, passasse a ser invisível. A pós-modernidade, exarcebando experiências da arte conceitual, acabou enredada no ilusionismo e naquilo que Baudrillard denuncia como um jogo de simulacros.
É como se vivêssemos uma época em que o discurso se descolou totalmente de sua contraparte, o real, como se tivesse se tornado significante puro.
Isto pode ser muito estimulante para debates acadêmicos, mas em termos existenciais e sociais é uma alucinação discursiva.
Por isto, terminando, é que insisto no termo anomia. Digo "anomia" e vou ao dicionário me entender: "1. Ausência de lei ou regras; anarquia; 2. Estado da sociedade no qual os padrões informativos de conduta e crença têm enfraquecido ou desaparecido; 3. Condição semelhante em um indivíduo, comumente caracterizada por desorientação pessoal, ansiedade e isolamento social; 4. Med. perda da faculdade de dar nome aos objetos ou coisas ou de reconhecer e lembrar seus nomes".
Em muitos casos, chegamos a um estágio de anomia ética e estética. A vida artística e a vida política e social mostram isto. Mas entrever essa anomia não significa ficar paralisado diante dela. Há instrumentos para analisá-la, diagnosticá-la. Daí que tenho proposto insistentemente (vejo outros intelectuais no exterior na mesma linha), uma revisão do que foi a modernidade e a pós-modernidade, como uma forma de, nomeando, configurar o sentido até mesmo do não-sentido.
Chegando ao fim desta comunicação, talvez pudesse terminar com palavras que usei recentemente ao participar de um seminário em Santiago do Chile, patrocinado pelo CEPAL, onde havia uma preocupação semelhante a esta aqui: queria-se entender os caminhos e descaminhos percorridos pelo Brasil e pelo Chile entre 1960 e hoje. Ali, evidentemente, tracei outro percurso de idéias. Mas terminei dizendo que o desafio comum que vejo para os intelectuais e artistas chilenos e brasileiros e nitidamente este: proceder à revisão urgente não apenas da década de 60, mas da modernidade e da pós-modernidade, não com os pés no retomo ao século XIX, mas com os pés no século XXI. Uma revisão impiedosa, que sendo uma autocrítica, seja um enfrentamento com os ídolos de ontem, porque a maior homenagem que se pode fazer a um contestador de ontem é contestá-lo hoje.
Com efeito, se olharmos a história da arte e do pensamento do século XX teremos, de certa forma, uma lúgubre imagem. Aí se falou exaustivamente da "morte da arte", da "morte da poesia", da "morte do romance", da "morte do homem", da "morte do sujeito", da "morte da história", da "morte de Deus". Enfim, essa seqüência de mortes nos convence que o século XX é um cemitério, um vasto cemitério.
Façamos a autópsia desse século. Procuremos a "causa mortis" de tantas idéias e ideologias. A ordem é recomeçar. Já dizia Nietzsche, o genial suicida e coveiro de tantas idéias, que só pode haver ressurreição onde houver morte. Não se trata, portanto, de regressar, mas de recriar algo novo que com o novo século se inicia. Mas para que isto se faça é preciso fazer o


EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX
Affonso Romano de Sant’Anna

1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
Mundiais e milhares
De outras pequenas
E igualmente bestiais.


2. Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3. Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux-vômica

4. Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5. Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
Que o vento levou.

6. Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7. Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro
a custo aproximou.

8. Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

9. Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno.
Século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10. Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para lugar nenhum.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Tornar-se adulto saiu de moda. Entrevista especial com Maurício Custódio Serafim

"Bebezões a Bordo" é o título do artigo de Maurício Custódio Serafim, publicado na revista GV-Executivo. Junto com o doutor em psicologia, Pedro Bendassoli, Serafim escreve sobre o processo de infantilização dos adultos de hoje. No texto, Serafim afirma que "O sistema social de infantilização do adulto mostra que existe hoje em grande parte de nossas sociedades civilizadas uma espécie de negação geracional: os pais, os adultos, enfim, as figuras de autoridade, estão abdicando do seu papel". A IHU On-Line procurou Maurício Custódio Serafim para falar sobre seu artigo e a conversa resultou na entrevista a seguir.

IHU On-Line - O que é ser adulto neste novo milênio? Quais são as mudanças mais significativas comparadas com os adultos das últimas décadas?
Maurício Custódio Serafim - Eu não sei ao certo o que é ser adulto neste novo milênio, mas tenho pistas do que não é. A questão central é que cada vez mais estamos sendo tutelados. Ou, mais dramaticamente, estamos querendo ser tutelados. Isso significa a perda do sujeito iluminista “consciente de seus pensamentos e responsável por seus atos”, ou, tomando o filósofo Emmanuel Kant como referência, estamos retornando a nossa menoridade, ou seja, a incapacidade de fazermos uso de nosso discernimento sem a direção de outro indivíduo. Segundo o filósofo, o homem é o próprio culpado dessa menoridade se sua causa não se encontra na falta de discernimento, mas na falta de decisão e coragem de “servir-se de si mesmo”, sem a tutela de outro. Tanto que o lema do Iluminismo, segundo Kant, era “Sapere aude!” (“tenha coragem de fazer uso de teu próprio discernimento”). Mas adentramos em outras eras e parece que não há mais disposição de levar este lema a sério.
Uma mudança significativa é mostrada pelo professor Michael Bywater em seu livro “Big Babies: or Why Can’t We Just Grow Up?” (Grandes bebês: ou por que não podemos apenas crescer?). Para o autor, estamos nos infantilizando porque cada vez mais estamos desistindo de nossa autonomia (e a carga intensa de responsabilidade que ela nos exige) para nos comportarmos de acordo com o que nos dizem que devemos fazer. Mais amplamente, as criações de “estilos de vida” nos orientam a como nos vestir, o que comer e beber, onde e como devemos morar, lugares que devemos freqüentar, cursos que devemos fazer, como devemos nos exercitar e como devo gerenciar a carreira profissional. Atualmente, para qualquer dimensão de nossa vida há “especialistas” ou “tutores” que nos dizem o que fazer. Nas gerações passadas não existia em dimensões como há hoje. Sabia-se, razoavelmente bem, o que se deveria fazer em cada etapa da vida. Adicionalmente, os ritos de passagem para a fase adulta eram mais claros e realizados mais cedo do que hoje. Mas, claro, tudo isso está restrito a algumas classes sociais. Não posso dizer se há um processo de infantilização dos adultos que habitam as favelas, por exemplo.

IHU On-Line - O senhor diz que a infantilização do adulto o leva a uma abdicação do seu papel, algo como abdicar de algumas responsabilidades que vem com a idade adulta. É dessa responsabilidade que as figuras de autoridade estão fugindo?
Maurício Custódio Serafim - Pode ser. Peguemos, por exemplo, as autoridades do Governo Federal. Nos anos 2005 e 2006, o partido do Presidente da República foi envolvido em escândalos de uso do direito público para fins do partido. A famosa frase do presidente, que “não sabia de nada”, é muito emblemática. Ele se isentou de qualquer responsabilidade e até hoje não conhecemos qualquer responsável, dando a sensação de que não foram pessoas concretas que agiram ilicitamente, mas entidades abstratas que já se dissiparam. Este tipo de atitude alimenta e é alimentado por uma espécie de ethos – não sei se restrito ao Brasil – de uma relativização – a meu ver, muito perigosa – da vinculação pessoa–responsabilidade. Outro caso, que me deixou particularmente horrorizado, foi o comportamento de autoridades do governo e de alguns intelectuais sobre o assassinato do menino João Hélio: culparam a sociedade, o consumismo da classe média, a qualidade da educação etc. Mas são todas as entidades abstratas e, com isso, deixamos de responsabilizar, de modo preciso os envolvidos no acontecimento: os assassinos e as pessoas que fazem parte da administração pública, que deveriam se ocupar de planejar e executar com eficácia políticas públicas que teriam como fim assegurar a integridade física das pessoas que utilizam o espaço público. E o que vemos é uma relativização. Relativizamos a responsabilidade dos assassinos, ao dizer que são fruto de uma sociedade injusta e, com isso, estamos afirmando nas entrelinhas que há uma determinação social de que o sujeito não pode escapar e que a sua escolha – neste caso, a escolha de matar – não é o componente mais importante; e os governos relativizam ao não assumirem sua responsabilidade, discursando como se nada tivessem a ver com a crescente deterioração da boa convivência da sociedade brasileira. Se prestarmos bem a atenção, está se tornando uma regra social no Brasil a de que “ninguém tem culpa de nada”.

IHU On-Line - Vemos, nas famílias, as crianças com cada vez menos tempo para brincar e muita responsabilidade escolar. Mais tarde, os adolescentes, numa fase de descobertas, são obrigados a escolherem sua profissão. Muitas vezes, esses mesmos adolescentes saem das escolas sem preparo e amadurecimento para enfrentar uma graduação. Isso poderia ser uma justificativa para a infantilização dos adultos? Eles podem estar com razão quando se defendem dizendo que não aproveitaram muito a infância e adolescência?
Maurício Custódio Serafim - Se olharmos para as gerações anteriores, as crianças talvez tiveram o mesmo tempo (em idade) para brincar do que hoje e as pessoas se tornavam adultas mais cedo, com 22 ou 23 anos. Hoje, muitos jovens com 22 anos se consideram adolescentes ainda. Tenho a impressão que esta defesa que você menciona já faz parte do efeito da infantilização, e não a causa.
Acredito que atualmente há uma tendência de se considerar o amadurecimento como algo ruim. Costuma-se afirmar que a sociedade está enfatizando o desejo pela eterna juventude. Isso ocorre principalmente pelo ponto arquimediano de nossa identidade estar atualmente no corpo. Portanto, o ápice do sentido de nossa vida estaria no corpo em seu ápice “hormônico” (diferentemente do “harmônico”, no tempo helênico) e dos músculos rijos. Se compararmos com a sociedade grega, vemos que nela o corpo também era importante, exercitavam-no, mas com o objetivo de atingir a excelência das habilidades inerentes a sua condição. Hoje, a excelência é dada por um padrão de concorrência que se situa fora de si, com riscos de não estar aprimorando suas qualidades e habilidades inerentes, mas se violentando para tenta alcançar um estágio que um outro estabeleceu do que deveria ser. E esse padrão de concorrência tem como uma de suas características a valorização da novidade por si mesma, cuja representação está no jovem que inova, como se os avanços organizacionais e tecnológicos não pudessem ser proporcionados por quem tem mais idade. Os rostos jovens dos fundadores do Google e do You Tube, explorados pela mídia, ajudam a solidificar este mito.

IHU On-Line - O senhor faz uma relação do desejo pela "eterna juventude" com a identidade ligada ao corpo. A maturidade seria o início da decadência?
Maurício Custódio Serafim - De fato, tenho a impressão que a maturidade está sendo percebida como o início da decadência, por essa percepção ter como critério unicamente o corpo biológico. Neste mito, a pessoa madura é vista como entrave à novidade, pois possui manias e tem a tendência de ser resistente às mudanças. Essa redução do corpo, que não leva em consideração tudo o que é humano – como as experiências que esse corpo vivenciou, as idéias que este corpo pensou, as obras que este corpo praticou e a excelência que este corpo alcançou –, transforma a maturidade em uma fase que se deva evitar ao máximo. E, para se evitar, nada melhor do que fazer de tudo para a infância e a imaturidade da adolescência se prolonguem ao máximo. Muitas vezes, sem percebermos, fazemos isso.

IHU On-Line - Se fala muito, hoje, em novos modelos de educação, sejam eles vindos da escola ou de casa. Qual o papel da escola nesse processo, se sabemos que nossa estrutura escolar é precária e seus conteúdos antigos?
Maurício Custódio Serafim - Acho que antes devemos entender melhor o fenômeno da infantilização para que possamos traçar um primeiro rascunho desse modelo. Posso fazer uma sugestão que, não sendo suficiente, ao meu ver é necessária: a retomada da autoridade do professor em sala de aula. Sabemos que atualmente o professor está quase que abandonado: não é mais o professor que vai reclamar na coordenação da indisciplina dos alunos, mas são os próprios alunos que reclamam para a coordenação ou direção de algo que não gostaram do professor. Isso mina sua autoridade, que deverá se explicar para o seu coordenador. A figura de autoridade é que estabelece na criança os limites éticos e cívicos, e é essa figura que ela deverá superar em sua psique para se tornar um adulto. Se o professor não tiver mais a autoridade legitimada, nada disso acontecerá (claro, dentro dos limites do que a escola pode fazer para a criança).
Maurício Custódio Serafim é mestre em Engenharia de Produção e Sistemas pela Universidade de Santa Catarina e doutorando em Administração de Empresas na FGV-EAESP. Experiente na área de Administração e Sociologia atua, principalmente, com os temas de estudos organizacionais e empreendedorismo e religião. Confira a entrevista.