segunda-feira, 1 de junho de 2009

Entrevista com Ferreira Gullar

O senhor disse durante a palestra que o homem vive no mundo da cul­tura e não no mundo da natureza, que o homem inventa a vida. Como assim?
Pois é, ele se inventa. O homem é uma invenção do homem. Quando nas­cemos, não somos ninguém, não te­mos nome, não sabemos nada. O que a escola nos ensina, o que o bem social nos ensina, o que nossa experiência nos ensina é que faz nos inventarmos como seres humanos. Antes disso, não somos nada. Não significa, no entanto, que nos inventamos a partir do nada. Inventamo-nos a partir de qualidades que já possuímos. Por exemplo, eu não poderia crescer alpinista, pois não te­nho músculo e morro de medo de altu­ra. Em função de alguns elementos, va­mos nos inventando. A civilização egípcia, por exemplo, é inventada sobre determinados valores. Eles ti­nham características que nós já não te­mos, acreditavam em coisas em que já não acreditamos, mas tudo aquilo constituía o mundo e os valores pelos quais eles viveram, lutaram, se apaixo­naram, se mataram. Tudo em função daquilo. A civilização grega já é outra invenção. Não sou a primeira pessoa a dizer que o homem é uma invenção de si próprio. Quando Marx diz que o homem é produto da História, das contradições, de seu trabalho, e afir­ma ainda que Deus não existe, ele es­tá dizendo que o homem é uma inven­ção de si.

Quando Freud estrutura a psicaná­lise, começa a chamar atenção para coisas que as pessoas não perce­biam antes. Ele também estava in­ventando?
Claro. Veja bem, não existem o id, o ego e o superego. Ele inventou uma concepção e organizou a subjetivida­de do homem dentro desses concei­tos. Mas faço questão de dizer que não se trata de uma invenção gratui­ta. A invenção gratuita é do louco. Só que, como ele não parte de elemen­tos objetivos, reais, sua invenção é frágil, não se mantém. E ele sofre ter­rivelmente com isso porque sente que sua invenção não se sustenta e que as outras pessoas não a aceitam porque não há essa relação com o concreto. Para durar, é fundamental que a invenção tenha essa relação com o real. Dependendo de como funciona essa relação, as invenções têm mais ou menos duração.

Onde ficam a poesia e as outras ar­tes dentro dessa concepção?
A arte tem uma função muito im­portante. Por não se basear em ele­mentos conceituais, por ser intuída, imaginada, ela fortalece o vínculo entre o real e o imaginário e a ciên­cia, o imaginário e a filosofia. Dá uma carnadura mais concreta a essa relação porque não é abstrata. É mais afeto, mais emoção. Complementa a filosofia e a ciência para que não haja só teoria ou só prática. O ser humano não é só feito de conceito e de ciên­cia. Essa outra parte é complementa­da pela arte.

O senhor acha que o homem acaba inventando também a sua memória?
Não inventa a memória, mas a transforma em outra coisa. A memó­ria acaba virando vida presente. Dei­xa de ser passado. O homem não quer o passado, e para isso o trans­forma em presente. Picasso diz que a arte é sempre atual. Isso é genial. Cla­ro! Obras de arte te emocionam ago­ra, como emocionaram as pessoas no passado. "A arte só tem de passado o fato de ter sido feita antes. Um dos milagres da arte é fazer com que o passado se torne presente. O passado "passado" é morte. Quando eu pego as bananas da quitanda e as transfor­mo em poesia, estou inserindo-as na nossa vida atual. Elas não pertencem à esfera da quitanda, transformam-se além do tempo.

Durante a palestra o senhor falou da sua viagem feita de São Luís do Maranhão a Teresina, no Piauí, e disse que conheceu Trenzinho Caipira, de Villa Lobos, e tentou colocar a le­tra, mas não conseguiu. Daí, em Buenos Aires, a questão volta ao contrário...
Antes, ao ouvir a música, eu me lembrei da minha infância. Agora, em Buenos Aires, ao falar da minha infância, eu me lembrei da música. Ao ouvir Villa Lobos, automatica­mente remeto à minha infância. Fi­cou dentro de mim. Então, quando eu vou falar de uma, acabo lembran­do da outra.

O senhor diz que a arte tem que emocionar, caso contrário não é ar­te. No entanto, hoje em dia as pes­soas teorizam tanto a arte...
Existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias. Isso não tem cabimento. Para refletir, preciso ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de pintar do Cildo Meirelles para fazer isso. Ele é um excelente pintor, mas por que ele não pinta em vez de fazer o que está fazendo? Co­loca escrito na obra "Urinóis – cocô artificial com planta natural". É para pensarmos sobre isso? O que vamos pensar sobre cocôs e plantas artifi­ciais? Isso é muito pobre. Se ele fi­zesse os guaches que fazia antes, se comunicaria e transmitiria coisas que as pessoas poderiam sentir por meio da arte. Estive agora em Paris e fui ao Museu de Arte Moderna. Só vale pelo acervo de obras realizadas até a dé­cada de 40. Depois disso, nada vale a pena. O museu está vazio, ninguém vai lá. Tinha até uma exposição da Yoko Ono, que só faz besteira tam­bém, mas mesmo assim estava vazio. Só está lá porque ficou famosa de­pois que casou (com o ex-beatle John Lennon). É inacreditável ver os dire­tores do museu convidando esse tipo de gente para expor. O resultado dis­so é que ninguém vai lá ver a exposição. Já o Louvre recebe multi­dões de pessoas, assim como o Mu­seu Picasso.

E quanto aos críticos que escre­vem páginas e páginas sobre essa ar­te conceitual? As vezes, ao terminar­mos de ler uma dessas críticas, nos sentimos péssimos, pois não enten­demos nada.
Nem eles entendem, porque não há o que dizer sobre isso. A Jac Lemer fez uma exposição no Rio de Janeiro com umas maletas de viagem e teve um crítico que citou Heiddeger e Marx para apresentar a exposição. Não tem nada a ver com nada. É um texto indecifrável que, na verdade, não significa nada. O crítico não tem o que dizer e fica inventando. Vai di­zer o quê? Que as maletas estão bem arrumadas no espaço? Realmente não há o que dizer, pois ela nem fez as ma­letas, as comprou prontas. A rigor, não pode haver crítica sobre essa bes­teirada. O difícil é explicar como isso se mantém há décadas. A Bienal de Veneza acabou de ser inaugurada com as mesmas bobagens. Antes de ser aberta ao público, um cara mandou uma proposta de instalação que é um absurdo, e foi obedecida pela direção do evento. A idéia propunha a criação de um muro que fechava a entrada do pavilhão espanhol. Para que a entrada fosse permitida, seria necessária a apresentação do passaporte espa­nhol. Ou seja, ninguém conseguia en­trar. E o incrível é que a Bienal topou isso! Na verdade, o artista estava era fazendo uma grande gozação com a Bienal, gozando a instituição. Essas pessoas são niilistas. Destruíram a ar­te, são pessoas que não têm o que fa­zer na vida e, com razão, gozam uma instituição que quer instituir algo que não existe. Essa instituição tanto vive um impasse que aceita a sugestão de um cara que manda fechar a porta da sua própria exposição. Afinal, se ne­gasse o pedido, ela não seria uma ins­tituição de vanguarda, seria conserva­dora. e como é de vanguarda tem que dizer sim. Só que isso acaba com ela. O que acontece então? Acontece que a Bienal praticamente não tem mais expressão alguma. É moribunda, está se autodestruindo. Aceitar esse tipo de coisa é autodestruição.

Por que os críticos têm tanta raiva da pintura no Brasil?
Acho que foi um processo que co­meçou com as vanguardas do início do século XX e cujo elemento princi­pal é a racionalidade se sobrepondo à fantasia e à criatividade. Isso nasce de uma visão equivocada de que a ciência é superior à intuição e à ima­ginação. Trata-se de uma característi­ca moderna. A ciência é produto da nova idade, logo, tudo o mais é pas­sado e retrógrado. Emoção e intui­ção são velharias. Só que, ao fazer is­so, a arte caminhou para a autodes­truição, pois a imaginação é a maté­ria-prima da arte. Por isso a arte plás­tica acabou, pela exclusão desses ele­mentos. A poesia, o cinema, o teatro e a música não acabaram. A literatu­ra não acabou porque não seguiu Finnegans Wake, senão teria acaba­do. Que romance teria sido escrito se a partir de Finnegans Wake fosse feito como se fez nas artes plásticas, em que Duchamp declarou "daqui não se volta, vamos adiante?" Sim­plesmente não haveria toda a obra de Jorge Luis Borges, de Julio Cortá­zar, de Gabriel Garcia Márquez, de Hemingway... Não haveria os roman­ces modernos italianos, ingleses, franceses, Guimarães Rosa ou Graci­liano Ramos. Vanguarda houve em todas as áreas das artes. Cheguei a ouvir concerto aqui em São Pauto que era uma enceradeira e um liqui­dificador. Mas não preponderou. O Único setor que seguiu isso foram as artes plásticas. É um enigma, não sei explicar o motivo. Além de tudo, ain­da se conta com uma instituição como a Bienal que mantém e financia isso. As exposições estão desertas. Só vão crianças, que são levadas compulsoriamente. A última Bienal foi um fracasso. Todos os vídeos eram chatérrimos e cheios de boba­gens. Em Paris, assisti recentemente a um vídeo que só mostrava um cara berrando sem parar. Interna esse ca­ra! Vídeo bom é aquele que narra al­guma coisa.

"Arte e pensamento estão num beco sem saída", por Arnaldo Jabor

O que foi que nos aconteceu? Hoje as antigas palavras que eram nosso muro de arrimo foram esvaziadas de sentido e ficamos à deriva. Por exemplo: “futuro”. Antes, era um lugar a que chegaríamos, um lugar no espaço-tempo que nos redimiria de sofrimentos, linha de chegada da esperança. Agora, vivemos diante de um futuro que não chega e de um presente que nos foge sem parar. Isso nos faz saudosos do presente como se ele fosse um passado. Se tínhamos conceitos e até deliciosos dogmas para explicar o mundo, agora só temos uma leve vertigem permanente de que o “tempo não pára e de que as idéias não correspondem mais aos fatos”, como cantou Cazuza. Isto está virando um bordão filosófico, mas vamos lá...

No Brasil, vivemos a angústia do provisório. “Ah... os juros vão cair quando fizermos as reformas, depois que o Estado se enxugar!...” Mas... quando isso virá? Ninguém sabe, pois não há ideologias administrativas claras e isso nos danifica o presente e desmoraliza o futuro. O campo está aberto para loucuras populistas, para radicalismos burros, como vemos na América Latina, onde a democracia vai caindo em descrédito, com provocadores boçais como Hugo Chavez, incensado por idiotas terceiro-mundistas. Intelectuais e artistas vivem em pânico, pois seu reinado de sínteses se extinguiu. Os acontecimentos vão ficando incompreensíveis, impalpáveis. Hoje, no tempo das informações infinitas, na internet, na revolução audiovisual, nada se fecha em conclusões. Pipocam religiões novas e irracionalismos autoritários que nos dêem alguma certeza, nem que seja a do chicote em nossas costas, pedras em nossas cabeças ou guerras sangrentas que nos purifiquem.

Vivemos a dor de uma transição dos tempos do Sentido para uma era indefinível, o que nos dói como uma mudança de pele, sem saber se vamos para uma Renascença ou uma Idade Média. Todas as reflexões filosóficas ficaram céticas, deprimidas, descrevendo impossibilidades e becos sem saída. Nunca imaginávamos que o século XXI seria parecido com o século VII, quando Maomé se declarou o único profeta. Se antes tínhamos grandes narrativas cheias de esperança, hoje só nos resta louvar o fragmentário, deixando o Sentido para as grande corporações; só elas têm uma “racionalidade” fria que permanece. Mesmo no absurdismo dos anos 40-50, havia uma esperança de liberação individual — no existencialismo, no marxismo reformado — mas hoje caímos numa afasia que os pensadores tentam transformar em sabedoria do nada. Seria até um avanço filosófico saber que nunca chegaremos a lugar algum, que a História é assim mesmo, retalhada, fragmentária, que as sínteses morreram... Mas todo mundo quer certezas e assim... choverão fundamentalismos...

Na arte, então, tudo ficou também um bode negro. A destruição que vemos na vida, o império da sordidez mercantil, a ignorância no poder, o fanatismo do terror, a boçalidade da indústria cultural, a destruição ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além de qualquer “denúncia” artística; o mal é tão profundo que denunciá-lo mecanicamente destruindo a própria arte como uma “prova do crime” acaba virando quase uma cumplicidade.

Sobrou para os artistas uma atitude geral masoquista, se mutilando na body art , se furando, querendo recuperar uma importância que tiveram nos tempos do modernismo, nem que seja pela destruição de si mesmos, para evitar o terrível sentimento de que talvez a arte tenha virado mesmo a mera produção de objetos descartáveis, desnecessários. Aceitar o efêmero da arte é vivido como a aceitação da morte. Aceitar apenas a produção de objetos vendáveis para as salas da burguesia é a derrota consumada. A morte da “aura” da arte está mais difícil de aceitar do que se pensava. Assim, o artista se vê como um profeta abandonado, e ele mesmo passou a usar a luz da “aura”, passou a ter “aura”, como um halo, como uma coroa de espinhos para sua solidão. O artista quer virar a obra de arte. E tudo faz para esquecer seu abandono, mesmo que seja expor seus excrementos numa latinha na Bienal de Veneza.

Caiu-me nas mãos uma revista velha com entrevista de Brad Holland, um ensaísta sacana e brilhante. Ele fala da arte de hoje e, de tabela, refere-se ao beco sem saída a que me refiro desde o início deste artigo-cabeça. Diz ele: “Duchamp fez uma obra-prima que foi um urinol. E chegou no fim da vida jogando xadrez como se fosse um objeto artístico. Meu avô também, acabou num urinol, jogando xadrez.(...) Tanto o dadaísmo como o surrealismo estão superados. É impossível distinguir esses movimentos estéticos da vida cotidiana.” Holland também sacaneia o expressionismo abstrato: “As multinacionais não podiam enfeitar seus “halls-Bauhaus” com retratos de palhaços tristes e casinhas de campo. Por isso, o abstracionismo foi inventado”. E depois: “Estamos tentando romper com as normas é, hoje, o slogan do anúncio do McDonald’s”. E a frase suprema: “Antigamente, o artista de vanguarda chocava a classe média; hoje, a classe média choca o artista de vanguarda”.

E, aí, vemos a verdade: a arte contemporânea está muito aquém da realidade. Que performance ou happening será mais contundente ou expressivo que a destruição de Nova York, do WTC? Que cadáver exposto dentro de garrafas ou latinhas de bosta ou tubarões podres ou latas de lixo são mais assustadores que a eternidade da guerra Israel-Árabe ou do inferno do Iraque? Sobrou uma denúncia tola (que aliás absolve gentalha sem talento), muito aquém da complexidade do horror de hoje. E não só na arte — em tudo. Na filosofia, na política, na economia.

É isso aí. Eu ia escrever sobre a entrevista do Lula, mas me deu uma depressão pânica e desisti de criticar o óbvio. Fiquei com saudades da arte, fugi em busca da “beleza” e deu nisso: mais um beco sem saída. Não tem solução; só o cianureto de potássio.

"A cultura como ideologia" por Márcia Denser

Nosso presente histórico é caracterizado pela fusão de cultura e economia (não é uma merda? este não seria o sentido profundo do “fim da arte”?).

A cultura (e a arte) não é mais aquele lugar onde negamos ou nos refugiamos das duras realidades da luta pela sobrevivência, isto é, do capital, mas sua mais evidente expressão. Por exemplo, o século XIX utilizou a beleza como arma política contra o materialismo tacanho da sociedade burguesa, dramatizando seu poder negativo para condenar o comércio e o dinheiro e gerar um desejo por transformações pessoais e sociais no coração de uma sociedade industrial horrível.

A arte era um espaço para se projetar novos e melhores mundos. E só o fato de imaginá-los tornava-os potencialmente possíveis. Por que então hoje não podemos vislumbrar na cultura tais funções políticas genuínas? Por que este vazio, este silêncio, este temor inconfessável, estas más intenções declaradas (ou não), essa atmosfera castradora e broxante no lugar da arte? Por que arte e cultura perderam o velho prestígio que gozavam anteriormente? Por que apenas restaram umas tantas manifestações/ocupações/instalações, o caralho, assépticas, anódinas, estúpidas? E dá pra se fazer algo melhor, ou algo realmente bom, genuíno, poderoso, sei lá, sob o império da grana?

Para Jameson[1], esta é uma questão que nos permite medir a distância entre os efeitos de uma mercantilização incompleta e o comércio visto numa escala global e tecnológica, na qual os últimos esconderijos que restavam – o inconsciente e a natureza, ou a produção cultural e estética e a agricultura – foram assimilados pela produção de mercadorias.

Numa era anterior, a arte era uma região além da mercantilização na qual a liberdade estava disponível, até na Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer ainda havia zonas da arte fora da cultura comercial (que para eles seria essencialmente Hollywood). O que define a cultura (e a arte) atual é a supressão de tudo que esteja fora da cultura comercial (porque fora da cultura comercial nada existe), a absorção de todas as formas de arte, alta e baixa, pelo processo de produção de imagens.

Hoje, a imagem é a mercadoria e é por isso que é inútil esperar dela uma negação da sua lógica de produção. É também por isso que toda beleza hoje é meretrícia e que todo apelo a ela, no pseudo-esteticismo contemporâneo, não é um recurso criativo, mas uma manobra ideológica.

Nesse esquema, que coagiu “o espetáculo como forma de resistência” para transformá-lo “em forma de controle social”, a cultura é o grande negócio, daí que investimentos culturais como shows, exposições, óperas, museus, festivais tornam-se parte vital da terceira geração do imaginário ideológico das chamadas “cidades-globais”.

Do ponto de vista urbanístico – que é onde mais se evidencia o uso da cultura como ideologia –, o livro O Mito da Cidade GlobaI, de João Sette Whitaker Ferreira (Rio, Vozes, 2007), levanta questões importantes, relembrando exemplos paradigmáticos já com três décadas de idade, como a Opera Hall de Sidney, a pirâmide do Louvre e a Ópera da Bastilha em Paris, a nova Tate Gallery e o Pavilhão do Milênio em Londres, o museu Guggenheim de Bilbao; grandes exposições culturais como o Brasil-500 em São Paulo, o bicentenário da Revolução Francesa em Paris, sem contar os jogos olímpicos de Barcelona ou a Copa do Mundo da Alemanha.

E aqui ele chama a atenção para o fato de que em todos esses empreendimentos, o evento (ou o monumento) sempre se torna mais importante do que a produção cultural em si, num espelhamento no campo urbanístico daquilo que se tornou paradigma da economia global: o predomínio absoluto da marca acima até do produto. A pirâmide de Pih no Louvre ficou mais importante que o próprio acervo do museu, aliás, alguém já se preocupou em saber exatamente o que há dentro do Guggenheim de Bilbao para além do projeto de Frank Ghery?

Paralelamente à tendência de obscurecimento ou diluição da arte, dos artistas e das condições concretas da criação, acontece uma dilatação do prestígio dos museus, galerias e curadores. É como se os valores da montagem e da promoção prevalecessem sobre os da imaginação e da expressão artística. Numa cultura de mercado, a vitrine, a embalagem, a grife se tornam a chave de um ato que se caracteriza mais como consumo do que como invenção cultural. Consumo do quê? De nada, além de ideologia.

De forma que hoje a arte já não é espaço utópico, tampouco refúgio ou contestação ou transgressão de coisa alguma. Interpenetrada pela lógica do lucro deixou de ser arte. O que é isso então? Bom, isso que chamamos cultura (ou arte, sei lá) passou a ser o veículo ideológico do Pensamento Único. E já que se trata de ideologia (ou interpretação do real difundida pelo poderoso da vez para continuar no poder) – aliás, mais uma – não é nada irreversível tampouco inexorável.

"A ditadura do relativismo existe?" por Gilberto de Mello Kujawski

Joseph Ratzinger, ainda cardeal, defende a fé católica contra o que chama a “ditadura do relativismo”, exemplificada no marxismo e no liberalismo de livre mercado, no libertarismo, no coletivismo, no ateísmo, na religiosidade vaga, no agnosticismo e no sincretismo. O ilustre historiador Boris Fausto, em artigo na Folha de S. Paulo, contesta a posição de Ratzinger, negando a ameaça de uma ditadura do relativismo: “Na verdade, dentre as ameaças que rondam o mundo atual não se encontra a chamada ‘ditadura do relativismo’.
Encontram-se, sim, as visões fundamentalistas, de métodos e matizes variados, mas com alguns traços essenciais comuns” (A ditadura do relativismo, 12/5). Exemplifica com o “fundamentalismo religioso americano” e o “fundamentalismo islâmico”.
Ora, não é preciso ser sábio para perceber que o fundamentalismo a que se refere o prestigiado professor não passa da reação ao relativismo imperante na História contemporânea, acusado naquelas opções mencionadas pelo então cardeal Ratzinger, o marxismo, o liberalismo de livre mercado (porque há outro liberalismo que não é o de livre mercado), o libertarismo, o coletivismo, as religiões vagas, o sincretismo, etc.
São esses fenômenos que formam o clima cultural em que respiramos e vivemos, em período de tremenda instabilidade de todos os paradigmas, em crise inegável desde o século anterior. Fundamentalismos não passam de reações desastradas à unanimidade do relativismo, cada vez mais generalizado e consolidado. Interessante a distinção entre pluralismo e relativismo, devida a Isaiah Berlin, lembrada no artigo por Fausto.
Em resumo, o pluralismo admite, com direitos iguais, distintas visões da realidade, diferentes formas de pensar, crer, avaliar, viver e agir, todas elas igualmente legítimas. A nosso ver, a diferença, em contraposição ao relativismo, é que o pluralismo argumenta com idéias, crenças e valores inteiros, completos, tomados em sua integridade, ao passo que o relativismo se contenta com visões fragmentárias, meias-verdades, meios-valores, meias-crenças, etc.
Em outras palavras, o pluralismo é uma atitude generosa e tolerante que admite a multiplicidade do real e dos caminhos para chegar a ele por meio das crenças ou das idéias. O relativismo, diversamente, representa o ponto final do ceticismo e do niilismo, essa posição que “considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há qualquer sentido ou utilidade na existência”
Bento XVI não é nem poderia ser antipluralista. Ele prossegue na linha do Concílio Vaticano II, que abraça o ecumenismo religioso, o qual pressupõe o maior respeito às mais diferentes confissões.
A expressão mais completa e acabada do relativismo em nossos dias, sua versão oficial, está no pós-moderno. Em sua investida contra as utopias do iluminismo (razão, ciência, progresso), o pós-modernismo renega todas as utopias sem as quais a cultura não existe: o universal, a totalidade, a verdade, a nação, o Estado, a História e as metas da História.
Joga fora a criança junto com a água do banho. As utopias do iluminismo, na medida em que podem e devem ser superadas, também devem ser virtualmente conservadas. Não se pode condenar o homem a recomeçar sempre do zero.
A noção forte do pós-modernismo é a fragmentariedade, assim como no modernismo era a noção de totalidade. Na visão fragmentária do mundo estão contidas todas as demais categorias do pós-moderno: a anarquia, a dispersão, a indeterminação, a antiforma, a antinarrativa, o inacabamento, a metonímia, a mutação, a esquizofrenia, etc., conforme a tabela comparativa entre modernismo e pós-modernismo elaborada por Hassan (1985).
O fotógrafo “moderno”, ao focalizar uma cidade histórica, Veneza, por exemplo, fixa os grandes conjuntos, como a Praça S. Marcos, a catedral, os canais e as pontes, os velhos edifícios, etc.
O fotógrafo “pós-moderno”, ao contrário, toma somente flashes parciais da cidade e de seu movimento, detalhes nem sempre significativos, não a catedral, mas o rosto pela metade de um turista, não a estátua inteira, mas um detalhe de seus pés, por exemplo, organizando um mosaico estilhaçado do tema, numa visão não integrada, uma mixagem de sintaxe duvidosa.
Ao que parece, o pós-modernismo resulta do excesso de informação que congestiona hoje o conhecimento, corrompendo a integridade do sentido, subvertendo as visões totalizantes, panorâmicas, à distância, pelo registro míope, destorcido e anárquico das coisas.
O excesso de informação, implicando informações contraditórias, dá lugar ao relativismo e suas meias-verdades, meias-visões e meios-valores. Passam-se a admitir direitos iguais, igualmente legítimos, para uma frase de rock e uma ária de Bach, uma página de Shakespeare e uma história em quadrinhos, a missa solene na catedral e o culto do bispo Edir Macedo.
Pois tudo é, mesmo, muito relativo. Estabelece-se o jogo do vale-tudo, que resulta no vale-nada, na soma zero da cultura.
Conclusão inesperada: o pós-moderno deve ser rejeitado em bloco? Será que nele nada se salva? Seu destino inevitável será a lata de lixo? Não é o que pensamos. Uma coisa é o pós-modernismo como doutrina, como tese em polêmica com o modernismo, e outra coisa é sua execução.
Nesta deparamos com achados extraordinários, na fotografia, na pintura, na arquitetura, no cinema, na literatura. Lances pós-modernos constam em autores como Fernando Pessoa, J. L. Borges, Ezra Pound, Carlos Drummond de Andrade e muitos outros.
Certos aspectos mais rígidos e calcificados da cultura iluminista podem receber a oxigenação e a revitalização do pós-moderno. O pós-moderno, expurgado da doença senil do relativismo e do excesso de doutrina, em pequenas doses, pode agir à semelhança das vitaminas no organismo combalido da cultura. Tudo é questão de dose.
O ideal seria combinar o moderno com o pós-moderno. Pois é possível conceber uma grande narrativa feita de pequenas histórias. Não é o caso do próprio Homero?