quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A arte do equívoco (ou o equívoco da arte), por Márcia Denser

Uma triste marca da nossa atualidade é o desaparecimento do espírito crítico – e do próprio crítico – da cena pública em quase todas as áreas do conhecimento, do pensamento e das artes. Esse é um fato que venho discutindo há muitíssimas colunas e sob inúmeros ângulos.

Embora cada vez mais raros no Brasil (e no mundo), ainda existem intelectuais que atuam criticamente no espaço público: é o caso de Affonso Romano de Sant’Anna, poeta, ensaísta, professor, crítico da cultura, que dia 7 de agosto vai estar em Sampa, palestrando a nosso convite no Centro Cultural São Paulo ao ensejo do lançamento de O enigma vazio, que sai pela Rocco na Bienal do Livro.

Desde 2001, meu bom amigo Affonso comprou um briga das boas: resolveu intervir criticamente nas artes plásticas, algo que nasceu da sua inquietação pessoal e da perplexidade cultural de muitos. A repercussão do artigo “Arte – um equívoco alarmante” (O Globo, 29-12-2001) provocou a escrita de mais 50, originando a publicação em 2003 de Desconstruir Duchamp (Rio, Vieira & Lent). Ele diz: “Para minha surpresa (e esperança), constatei que em vários países, críticos, intelectuais e artistas também estavam falando sobre o atual niilismo pseudocriativo nas artes plásticas. Isso incluía Lévi-Strauss, Vargas Llosa, Jean Baudrillard, Mircea Eliade, Eric Hobsbawn, Pierre Bourdie, Jameson, Robert Hughes, crítico do Times etc. Já não se tratava, como nos anos 60, de discutir as vanguardas, mas de ir além e fazer uma revisão da modernidade e da confusa pós-modernidade e repensar a crítica da arte dentro da crítica da cultura.”

Para ARS, não se trata de ser contra ou a favor da arte “contemporânea”, mas de mostrar o quanto o termo tem sido usado de forma inapropriada, e nenhuma pior que certa “arte contemporânea” que surge como simulacro de globalização, uma forma artística do Pensamento Único, no espaço de júbilo, no qual a periferia tem sido chamada a dar aval ao que a metrópole produz, convencendo-a de que ela também está no centro. Pois é: me engana que eu gosto.

Ele denuncia, sobretudo, a “anomia” (ausência de regras) que predomina no campo da artes: mas quando tudo é arte, então nada é arte:

Adiante, alguns trechos do artigo “Além da pós-modernidade”, com o subtítulo “Estamos sendo a lata de lixo da cultura alheia, reciclando dejetos”.

Sobre as diferenças entre modernidade e pós-modernidade: “A modernidade ocorreu na cultura ocidental entre 1860 e 1950, a pós-modernidade expressou-se a partir de 1950, tendo tido seu apogeu em 1980. A diferença essencial entre modernidade e pós-modernidade é que a modernidade tem consciência do tempo e da história, propõe projetos de cultura, de arte e de país, enquanto a pós-modernidade, eximindo-se da temporalidade histórica, demitiu-se de qualquer idéia de projeto, satisfazendo-se com o agora, com a razão cínica, com a aparência, a fragmentação, o pastiche, deixando-se conduzir pelo mercado, renunciando a qualquer esforço de pensar o conjunto de forças. Por isso, a cultura pós-moderna, por exemplo, nas artes plásticas, se tornaria mais uma cultura de ‘sintomas’ do que de obras. Instalando-se comodamente em suas impotências, se rejubila por seu niilismo e narcisismo inúteis.”

“Ao contrário da pós-modernidade, os artistas brasileiros fundadores da nossa modernidade tinham um projeto cultural e um projeto de país. Nos anos 50 e 60, nós, os que repensávamos as vanguardas e a revolução no continente, tínhamos um projeto estético e um projeto de nação (...)

As obras de Niemeyer, Portinari, Drummond, Graciliano Ramos, Villa-Lobos, Gilberto Freyre, entre outros, são uma reinvenção do país e uma reinvenção de linguagem. A argúcia de Mário e Oswald de Andrade foi terem percebido que não se devia importar, copiar, transplantar simplesmente a cultura, como hoje a pós-modernidade faz a reboque da globalização. Estamos sendo a lata do lixo da cultura alheia, recebendo e reciclando dejetos culturais gerados na usina do ócio e do lucro capitalista, que concentra a riqueza e globaliza a pobreza. (...)

Enquanto a modernidade operava com o conceito de projeto (o lançar-se à frente), a pós-modernidade se compraz com eventos, instantâneos como fogos de artifício. Produz obras fugazes, confundidas com os detritos do tempo. O brilho é rápido, nascido da improvisação. Ocorre o culto da aparência revisitada de revistas tipo Caras, e a figuração de uma Quem, que não é sujeito, senão um objeto que pode ser metonimicamente trocado por qualquer outro no palco do instante. (...) Os artistas substituíram o pacto com o público por um pacto exclusivo, feito apenas entre seus pares. Não apenas excluíram o público, mas até o hostilizaram.”

“O que se pretende é fazer um diagnóstico disso que deixou de ser um fato estético e artístico para se tornar commodity ou um produto da sociedade do espetáculo, um pastiche, um passivo sintoma da anomia ética e estética.”

Posso dizer que ARS e eu temos muitas idéias em comum: de forma semelhante, ambos identificamos a cultura como veículo ideológico do neoliberalismo. Como ressalta Otília Arantes, reportando-se a Debord, nesse processo que coagiu o espetáculo como forma de resistência para transformá-lo em forma de controle social, a cultura não é a contrapartida das práticas mercadológicas, mas é a parte decisiva do mundo dos negócios, aliás é o grande negócio!

O mimetismo cultural solapa as iniciativas de acúmulo do conhecimento e da construção da nação. Um bom exemplo: a análise do ideário do planejamento urbano no Brasil configura “idéias fora do lugar” enquanto há um “lugar fora das idéias”, isto é, uma parte da realidade urbana – ilegal, oculta, ignorada, que não é objeto de teorias, leis, planos, gestão, ao passo que a cidade do mercado hegemônico, a cidade oficial mimetiza o debate internacional, a matriz postiça não dá conta da realidade concreta, ou, como escreve Sergio Buarque de Holanda, as idéias vindas de fora asfixiam nossa “vida verdadeira”.

E a literatura absolutamente não está fora deste debate, das mesmas imposições mercadológicas e categorias fajutas, mas dada sua natureza, seu suporte material, de palavra, de sinal nu e cru, de veículo direto do pensamento, sem alusões, sem sugestões, nem mediações para além da língua comum, ela praticamente impossibilita a fraude estética. Salvo o auto-engano, claro. Mas este Freud explica, não é mesmo?



PUBLICADO EM:05/08/2008

* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.

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