quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A ditadura dos curadores: críticos tomam o lugar dos artistas e brilham mais do que nunca na Bienal de Veneza, por Luís A.Giron

É comum dizer que a arte fica e o homem desaparece. No caso da 50a Bienal de Veneza, a frase feita virou motivo de graça entre os que a visitam. Os artistas compareceram em peso à abertura, em 14 de junho, desse que é o maior acontecimento de arte do mundo. Mas, passadas as famosas festas de inauguração, nem um dos 380 artistas participantes restou para contar história. Permanecem as obras, embora boa parte deva sumir no fim do evento, em novembro. Algumas já têm até suas idéias e seus materiais derretidos ao sol do verão. A maioria vem com explicações que não pertencem aos artistas, mas aos organizadores das exposições. Toda arte aqui está legendada. O resultado é que o público se sente desamparado porque pouco entende do que vê sem recorrer às legendas. Ironicamente, o título da edição que festeja o centenário da Bienal é Sonhos e Conflitos - A Ditadura do Espectador. Só se o espectador em questão for um sujeito privilegiado, que faça parte do círculo do curador-chefe, Francesco Bonami.
'Caducou a idéia da grande mostra, sob o comando de um curador', diz Bonami, um inquieto crítico florentino de 48 anos que mora em Nova York. 'Por isso, optei por chamar outros nove curadores e dar várias vozes a um mesmo corpo.' Ele montou com seus colegas uma Bienal multiuso. Os inimigos têm atacado seu projeto como o mais inofensivo dos últimos tempos por causa do clima de 'vale-tudo' que transpira. O fato é que os artistas saíram de cena e foram substituídos pela oligarquia de organizadores que desfila pelas instalações. São eles, e não o espectador comum, que exercem a alegre ditadura sobre a arte.

Há quem diga que tal regime é essencial para a sobrevivência do mundo da arte. Como ninguém compreende mais o que ela quer dizer - nem os que a produzem -, é necessário convocar curadores para lhe arranjar sentido. São críticos que se enxergam como príncipes da estética. Depois de terem exaltado os pintores destituídos de pincéis e anunciado a inexistência de autores, os novos heróis jactam-se de ir além e assumir que são artistas, embora desprovidos de obras. Gestores da imaginação, eles se apossam dos trabalhos dos outros para montar conjuntos brilhantes e controversos. Recorrem ao seguinte expediente: se não é mais possível expor simplesmente obras de arte, que se exiba no lugar delas a crise das obras de arte. Até isso já foi usado, só que não de forma tão insidiosa como a plêiade de Bonami. Ela parte da constatação de que a arte se pergunta para onde vai há 100 anos, provou de tudo e segue em movimento, ainda que aos círculos e às cegas. Organizar a ressaca do século XX e indicar o rumo para os futuros criadores é sua pretensão. Não é pouca. E eles só não atingem a meta porque curador jamais saiu ileso da empreitada.
O evento se distribui por três espaços. No suntuoso Museo Correr da Praça São Marcos, acontece a retrospectiva Pittura/Painting: de Rauschenberg a Murakami, 1964-2003. Trata-se da seção histórica gerida por Bonami, excelente e idiossincrática, tomada de visão dos últimos 40 anos da crise da pintura, período em que ela se expandiu até trocar os instrumentos tradicionais pelas novas tecnologias. Reúne a produção de 50 pintores e 56 'pinturas'. Elas traçam um arco da pop art, do americano Robert Rauschenberg, de 78 anos, consagrado na Bienal de 1964 com suas telas com técnica mista, à assimilação irônica da mídia por artistas como o japonês Takashi Murakami, de 40 anos, o ídolo desta edição, com seus painéis cintilantes que lembram mangás e animes, exibidos em vários espaços. A mostra tem co-produção da paulistana BrasilConnects, que tem produzido mostras importantes nos últimos quatro anos. 'Pela primeira vez, uma entidade brasileira integra a Bienal de Veneza com o objetivo de trazer a mostra ao Brasil', vibra Emílio Kalil, diretor da instituição. Ele anuncia que De Rauschenberg a Murakami será aberta na Oca do Parque do Ibirapuera no dia do aniversário de 450 anos de São Paulo, em 25 de janeiro, e se encerrará em março. Murakami foi convidado a vir ao Brasil com Bonami para inaugurar a exposição.
Um parque na área leste de Veneza, os Giardini, abriga os pavilhões nacionais. São 64 participações, além dos projetos La Zona/The Zone, com jovens artistas italianos, e Atrasos e Revoluções, de elenco variado - ambos montados pela turma de curadores. Para os especialistas, ali está o melhor da Bienal. O pavilhão que mais atrai público é o de Israel, com videoinstalações de Michal Rovner, de 46 anos, atuante em Nova York. Ele projeta sombras virtuais que representam multidões. Os hieróglifos humanos dançam, chocam-se e se reproduzem nas paredes e em cubas que remetem a testes clínicos. É uma reflexão sobre o destino caótico das massas. O Brasil recebe elogios por causa de duas cariocas de 40 anos: Rosângela Rennó, com suas soturnas fotos laminadas sobre PVC, e Beatriz Milhazes, que apresenta miragens florais do paraíso em acrílico sobre tela. Há bobagens como o pavilhão espanhol, com uma 'instalação' de Santiago Serra, de 36 anos. O visitante é proibido de entrar no edifício caso não possua visto espanhol. Quando reclama aos monitores, eles explicam que é arte conceitual. 'A obra é você se sentir excluído.' Situações ridículas misturam-se a trabalhos bonitos e comportados.
O coração ousado dos curadores palpita mesmo no Arsenale, vasto complexo de galpões que sediaram o arsenal da marinha da Sereníssima República. Ali se enfileiram oito módulos prospectivos, com títulos antenados: Clandestinos, Linhas Difusas, Sistemas Individuais, Zona de Urgência, A Estrutura da Sobrevivência, Representações Árabes Contemporâneas, Cotidiano Alterado e Estação Utopia. Há um pouco de qualquer coisa, da videoinstalação do chinês Chen Shaoxiong a telas, esculturas e mensagens políticas. Os curadores atestam que a arte não morreu, resiste a trilhar desvios e se fortalece quanto mais é atacada. Clandestinos, periféricos ou tecnológicos, argumentam, todos buscam se expressar ocupando desvãos. 'São gases que se dispersam em ambiente aberto', diz Hans Obrist, da Estação Utopia. Violência e protesto aparecem no Arsenale e fazem com que algumas publicações definam o evento como 'a Bienal da violência'. Bonami defende-se: a violência surge entre os demais traços da vida atual, como pressa, mudança do estatuto da cidade e consumismo. Na verdade, cenas chocantes ou cômicas quase não fazem efeito: uma macaca mecânica fala 'utopia', instalações pornôs, cantora que entoa três notas agudas para irritar o espectador. Impacto que é bom, nenhum.
A corte de curadores talvez não tenha atingido o objetivo. Um evento desse porte serve mais para evidenciar o estado das coisas que para pavimentar caminhos. Nesse ponto a Bienal funciona. Em arte, como em tudo, variedade e mediocridade convivem com poucas idéias. E arte, como diria Leonardo da Vinci, é antes de tudo 'una cosa mentale', sem importar técnica ou suporte. Daí os críticos se acharem no direito de soprar conceitos nas obras alheias. Mesmo porque não há um único artista para reclamar.

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