quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O guardião da arte, por Marcelo Marthe

O mais famoso especialista no assunto fala por que será sempre essencial voltar os olhos para os mestres do passado

O australiano Robert Hughes, de 68 anos, é o mais conhecido crí­tico de arte vivo. Por três déca­das, ele foi editor da revista americana Time. Dono de um estilo tão erudito quanto implacável, produziu ensaios brilhantes e também ficou famoso por destruir reputações. Entre o fim dos anos 90 e o início desta década, ele vi­veu um inferno pessoal. Em 1999, quase perdeu a vida numa colisão de carro em seu país. Além de enfrentar mais de vinte cirurgias e ficar três se­manas em coma, Hughes se viu às vol­tas com um processo sob a acusação de dirigir perigosamente. Foi absolvido, mas voltou à mira da Justiça aus­traliana por desancar os promotores do caso. Em 2001, outro baque: seu único filho, de 34 anos, cometeu suicídio. Recentemente, ele lançou o primeiro volume de suas memórias. E acaba de sair no Brasil, pela editora Companhia das Letras, o estudo que lançou em 2003 sobre o espanhol Francisco Goya (1746-1828). De Nova York, onde vive com a mulher, a pintora Doris Dow­nes, Hughes concedeu uma entrevista em que exalta os mestres do passado, condena o mercado de arte de hoje e fala sobre seu acidente.

Veja - O senhor escreveu sobre assun­tos tão variados quanto a arquitetura de Barcelona e a história da Austrália, mas o único artista ao qual devotou um livro individualmente foi Goya. Por que ele é tão especial?
Hughes - Como todo grande artista, o primeiro dado essencial sobre Goya é que sua obra extrapola seu tempo. Por meio de sua trajetória e de suas idéias, pode-se entender melhor a história da Espanha e da Europa. Mas não só. Mais que qualquer outro pintor, Goya nos permite obter um conhecimento profundo da natureza dos sentimentos e da idéia de justiça, assim como de seus reversos, a injustiça e a crueldade. Nós vivemos num mundo de ironias ex­tremas e de paixões e agressões tão de­satinadas quanto às de que trata Goya. A loucura de que ele nos fala é uni­versal e atemporal. Apesar de repre­sentar tanto para a arte, ainda faltava um livro que o alçasse à sua devida dimensão. Julguei que era uma tarefa importante fazê-lo.

Veja - O senhor concebeu a obra quando se recuperava de um acidente de carro quase fatal que sofreu em seu país, a Austrália. De que forma isso o influenciou?
Hughes - Volta e meia, sou acometido por vívidas recordações daquilo que se passou em minha cabeça naqueles dias difíceis. Tive alucinações e sonhos ab­surdos. Se fosse um pintor; certamente teria vasto material para me inspirar. Eu renasci depois do acidente. Ele me levou a conhecer a experiência da dor. E também a sentir o medo da morte como algo concreto. Isso tudo sem dúvida se refletiu no livro. Hoje, acredito que um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não es­tou dizendo, é óbvio, que seja necessá­rio quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso cer­tamente facilitou a apreciação da maté­ria-prima de sua obra, o sofrimento.

Veja - Em seu recém-publicado volume de memórias, o senhor conta como uma viagem a Florença durante a enchente que destruiu boa parte da cidade italia­na e de seus tesouros, em 1966, fixou sua crença no valor do passado para a arte. Por que chegou a essa conclusão?
Hughes - Em Florença, vivi a expe­riência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tra­gédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituí­vel. Não apenas porque não se pode­riam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes vi­suais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a idéia de que a arte atual possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte con­temporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX.


Veja - Como as pessoas podem se re­lacionar com a obra dos grandes pin­tores do passado?
Hughes - Olhando para o que eles pro­duziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composi­ções musicais do passado. Como o ho­mem atual pode se relacionar com Cer­vantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma his­tória contemporânea em qualquer tem­po e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse ape­lo intuitivo que ela nos arrebata e con­duz, no fim das contas, a um conheci­mento mais profundo de nossa natureza.

Veja - Qual o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa?
Hughes - Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu ca­ráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou um papel fundamental em minha vida, na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo.

Veja - Certas correntes do modernis­mo difundiram a idéia de que o passa­do é um peso do qual a arte precisa se livrar. O que o senhor pensa disso?
Hughes - A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de pri­meira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas ita­lianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado - como se fosse possível apa­gar sua influência apenas com sua ex­tinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no sé­culo XX se baseou no passado. Os mo­dernistas que realmente importam, co­mo Matisse e Picasso, nunca se pauta­ram por sua rejeição. Muito pelo con­trário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renas­cença e do século XVIII.

Veja - O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andy Warhol. Quais suas impressões dele?
Hughes - Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até pro­duziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dú­vida de que é a reputação mais ridicu­lamente superestimada do século XX.

Veja - E quanto ao francês Marcel Duchamp?
Hughes - Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primei­ro artista em minha lista dos mais im­portantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de idéias notáveis. Pessoal­mente, prefiro um pintor como o fran­cês Pierre Bonnard. Muita gente consi­dera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um tra­balho de Duchamp. Além disso, a in­fluência de Duchamp sobre a arte con­temporânea foi liberadora, mas tam­bém catastrófica.

Veja - Por quê?
Hughes - Porque ser o pai dessa boba­gem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para com­preender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras to­las em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos in­fantis. Ou precisa ler uma bula para en­tender o que o artista quis dizer.

Veja - Nos Últimos anos, obras de grandes artistas atingiram preços as­tronômicos em leilões. O que explica que se paguem 104 milhões de dólares por uma tela de Picasso?
Hughes - Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de al­gum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um qua­dro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.

Veja - Não há arte que valha tanto assim?
Hughes - Para mim, nem a maior obra-­prima. A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e cole­cionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou ten­dência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas ve­zes dificulta que um dia o grande públi­co possa contemplá-las em museus.

Veja - Nas últimas décadas, o inte­resse pelas artes plásticas parece ter diminuído - desde sua saída da Time, por exemplo, a revista não tem dado o mesmo destaque ao tema. A arte per­deu sua centralidade?
Hughes – É triste, mas o fato de as pessoas terem obsessão pelos altos preços pagos por quadros famosos não significa que elas queiram saber a1go mais sobre arte em si. Ela passou a ser vista apenas como um item a mais no cardápio do entretenimento, como as atrações do cinema e da TV. E também a ser avaliada com base nos mesmos parâmetros. Fala-se de um artista não por sua relevância, e sim pelo valor que suas obras atingem - como se fosse o orçamento milionário de um filme. Ou então por sua popularidade - como se fosse o índice de audiência de um programa. É uma visão distorcida.

Veja - Em suas memórias, o senhor comenta que os 3 200 dólares atingi­dos por um trabalho de Robert Raus­chenberg nos anos 60 não dariam pa­ra pagar dois drinques de Damien Hirst. o mais incensado artista inglês atual. A arte contemporânea está supervalorizada?
Hughes - É claro que sim. Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst - que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista co­mo Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.

Veja – O que o senhor pensa desse esforço dos curadores de museus para transformar as exposições em entretenimento para as massas?
Hughes - Não sou contra o entretenimento, em princípio. Só penso que não é função do museu preocupar-se em produzir eventos com esse fim. Há mostras maravilhosas que calham de ser realmente populares. Só que pode haver outras também maravilhosas,
mas que não têm tanto apelo - e é saudável que os museus continuem lhes dando espaço. É impossível deter­minar a qualidade de uma exposição em função de seu sucesso de público.

Veja - Para alguns especialistas, eventos como as bienais de São Paulo e Veneza tornaram-se obsoletas. O Se­nhor concorda?
Hughes - Não ligo a mínima para bie­nais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância ape­nas para os negociantes de arte. Por bai­xo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.

Veja - Países relativamente novos como o Brasil e a Austrália estão destinados a ter sempre um papel secundário na arte?
Hughes – Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença pró­xima do zero na arte mundial enquan­to qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para in­flar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome­se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é ape­nas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores no­vos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não pas­sam de idiotas e vítimas da moda.

Veja - Antes de se tornar um crítico, o senhor atuou como cartunista e tam­bém pintava. Há alguma verdade no velho clichê de que todo crítico é um artista frustrado?
Hughes - Absolutamente nenhuma. Eu me considero um artista completo, nem um pouco frustrado. Minha arte é escrever. Nunca tive inveja dos artistas nem escrevi nada com o intuito de me vingar deles.

Veja - O senhor coleciona arte?
Hughes - Não, por incrível que pareça. Tenho algumas gravuras de Goya que adquiri ainda na juventude e também telas de minha mulher, Doris. Mas nun­ca fui um colecionador. E vou lhe dizer por quê: logo descobri que, como críti­co, isso não seria ético.
Entrevista: Robert Hughes (Revista Veja, 25 de abril de 2007)

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