sábado, 13 de março de 2010

Vale-tudo na arte?, por Ivan Padilha

O jornalista Luciano Trigo começou a tecer suas críticas ao mercado de arte no blog Máquina de Escrever, em 2007. As respostas de leitores e internautas o levaram a aprofundar o debate no livro A Grande Feira, lançado no final do ano passado. Confira a seguir a entrevista com Trigo.

Como se pode medir a qualidade de uma obra de arte contemporânea?
A arte conceitual, as performances, as instalações e outros tipos de produção artística surgiram nos anos 60 e 70 como formas de contestação ao mercado e às instituições. Foram as últimas vanguardas modernas, um movimento autêntico de expansão e de libertação do campo artístico. Quando essas práticas foram reapropriadas e enquadradas pelo mercado e pelas instituições, a partir do final dos anos 70, isso gerou um problema: obras por natureza efêmeras ou mesmo imateriais, em suma, obras anti-mercado, passaram a ser codificadas segundo uma lógica ligada à arte como mercadoria. O resultado são instalações que pedem espaço e ar livre, ou interação com a vida cotidiana, apertadas em salas de galerias, ou obras feitas de material perecível indo parar nas reservas técnicas dos museus, de onde nunca mais vão sair. Houve uma refetichização do objeto de arte aplicada a uma arte de matriz conceitual, o que é uma contradição em termos. E houve também uma reafirmação do ideal romântico do artista como gênio iluminado, agora na condição de estrela pop, de pose transgressora mas muito bem-sucedido. No exterior isso é debatido claramente, mas no Brasil ainda é tabu.
Uma galerista disse que, como o mercado brasileiro de arte ainda é pequeno quando comparado aos mercados europeu e americano, não há espaço para obras de baixa qualidade. Você concorda?
Isso não faz muito sentido. De qualquer forma um dos problemas da arte hoje é que uma obra se torna relevante pela mídia que recebe e pela sua cotação no mercado, e apenas por isso. São dois fatores altamente manipuláveis. Quem daria atenção a um tubarão mergulhado em formol, obra do Damien Hirst, se ele não fosse apresentado pela mídia como uma grande obra e se não fosse vendido por milhões de dólares? Ninguém, pelo simples fato de que qualquer pessoa pode fazer coisas parecidas - o que as pessoas comuns não têm é um estrategista marqueteiro por trás, como o Hirst teve o Charles Saachi, que inventou toda uma geração de artistas. Como não existe mais a crítica de arte como contrapoder, não há mais a possibilidade de discussão sobre o valor estético da obra em si, nem interessa em que haja, então falar de qualidade ficou problemático. A crítica abriu mão de julgar, seu papel hoje é endossar os artistas que o sistema elege.
Seu livro está centrado principalmente em exemplos de fora. Você citaria artistas brasileiros cujo sucesso tem por base o marketing exagerado e a especulação em detrimento da qualidade?
Mesmo sem dar quase nenhum exemplo brasileiro, o livro A Grande Feira já me fez colecionar olhares tortos, mesmo entre artistas que aprecio, então prefiro não citar nomes. Mas posso citar, sim, artistas que reagiram de forma positiva ao debate que o livro provoca, como Adriano de Aquino, Ivald Granato, Iran do Espirito Santo e Antonio Veronese, entre outros, além de Gianguido Bonfanti e Gonçalo Ivo, que escreveram textos de apresentação. O problema é que no Brasil a reflexão sobre a arte ficou tão rala que as pessoas reagem a qualquer questionamento com um raciocínio binário, que classifica como reacionário quem critica e como aliado quem engole qualquer coisa. É a lógica do compadrio, da rede de relacionamentos. Tanto que o comentário que mais ouço é que meu livro é "corajoso". Será que chegamos num ponto em que é preciso ter coragem para refletir sobre a arte?

Obra de Cildo Meireles
Qual sua opinião sobre os artistas brasileiros contemporâneos, como Cildo Meireles, Tunga, Beatriz Milhazes, Ernesto Neto e Adriana Varejão?
É importante ficar claro que A Grande Feira não é um livro de crítica de arte, mas uma investigação, entre jornalística e sociológica, sobre as regras da arte, sobre o sistema da arte hoje, isto é, sobre o conjunto de práticas, valores e instituições que determinam que tipo de arte será valorizada e reconhecida. Então meu gosto pessoal não é relevante para a discussão que proponho. Dito isso, acho o Cildo Meireles fundamental, talvez o mais importante artista brasileiro vivo - especialmente na sua produção dos anos 60 e 70, que combina questões políticas e sociais com reflexões sobre a própria natureza da arte. O Ernesto Neto e a Adriana Varejão, que são da minha geração, têm obras interessantes, o Neto pela plasticidade, a Adriana pelo diálogo inteligente com a Arquitetura e a História. Os dois, por outro lado, se projetaram já num contexto pós-moderno, de dominação da arte por uma lógica dominada por razões de mercado, aproximando- se da moda e da indústria do espetáculo. É esse contexto que eu coloco em questão, não a obra deste ou daquele artista. Já do Tunga gosto de alguma coisa da produção mais antiga, como as xifópagas capilares, mas sua produção recente me parece uma bobagem. Por exemplo, uma performance com sete bailarinos, 40 estudantes de biologia, 600 rãs, 2 mil girinos, 40 mil moscas e milhares de larvas. Nessa altura do campeonato, qual a relevância disso? Aí se cria uma aura em torno da obra, como se qualquer coisa produzida pelo Tunga fosse grande arte. Muitas vezes um artista acaba criando um personagem de si mesmo e não consegue mais sair dele: passa a acreditar naquilo que o sistema diz que ele é. Já os quadros da Beatriz Milhazes são bonitos, mas repetitivos, variações sobre o mesmo tema.
Mais de um galerista com quem conversei citou Romero Britto como exemplo de artista que se vale de auto-promoção, já que ele não tem trabalhos em museus e nem participa de feiras de arte (o sucesso de sua obra seria, portanto, um modismo). Você concorda com esse exemplo?
Eu nem gosto da obra dele, mas acho engraçado criticarem o Romero Britto. Em nome de quê? Ironicamente, o fato de ele não estar nos museus e nas feiras faz dele hoje um transgressor. A mainstream da arte hoje são os artistas, geralmente de matriz conceitual, que enriquecem reproduzindo procedimentos de 50 ou até 90 anos atrás. Esta é a arte acadêmica de hoje, porque é a arte que se ensina nas escolas de arte. Recebi dezenas de mensagens de estudantes do Brasil inteiro relatando que não se ensina mais técnica, nada, nas escolas. Essa situação é muito grave, é todo um conhecimento que se perde. O estudante entra hoje na escola de artes visuais e aprende que o "quente" é fazer um bigode com creme de barbear no rosto e intitular a obra "Tributo a Frida Kahlo", como faz a Sarah Maple, a nova estrela da arte britânica. Qualquer adolescente faz isso, é uma coisa velha, de 90 anos atrás. Marcel Duchamp designou a roda de bicicleta como obra de arte em 1913, e o urinol em 1917. Até quando vamos considerar isso contemporâneo?
Você diz em seu livro que os críticos hoje seriam espectadores, e não mais críticos. As críticas, ou matéria a respeito de obras e exposições que continuam sendo publicadas em revistas e jornais, hoje, têm maior ou menor importância para a promoção do artista do que em décadas passadas?
Os textos que ainda saem na imprensa são, quase sempre, vagos e descritivos, e muitas vezes apoiados em releases. Um crítico, hoje curador, já disse textualmente que o papel da crítica deixou de ser julgar e passou a ser testemunhar. Para mim este foi o atestado de óbito da crítica de arte. Para testemunhar não é preciso ser crítico. O crítico deveria funcionar como um contrapoder no sistema da arte, fazendo um julgamento esclarecido e bem informado sobre a obra de arte. Sem esse contrapoder, prevalecem os interesses comerciais e estratégicos dos donos do poder na arte.

Um comentário:

  1. Qualquer pessoa tem o direito de fazer coisas parecidas. Somos seres criadores com alguma possibilidade de fazer arte. Só que algumas pessoas são eleitas artistas por se dedicarem mais ao ofício; por exercerem o “mandato” em tempo integral adquirindo assim experiência, vivência, um processo de maturação. O segredo para se eleger artista é: Existir para fazer, fazer para ser. Fazer é realizar-se e comunicar. Se Damien Hist não fez arte quando colocou um tubarão mergulhado em formol, então o que ele fez? Tudo no mundo pode ser classificado como bom ou ruim, compreensivel ou incompreensivel, aceitavel ou rejeitável por qualquer indivíduo e “individualmente” ser reconhecido ou não como arte. A mídia achou que era uma grande obra de arte, alguem resolveu que valia milhões de dolares. Somos todos críticos quando queremos, portanto, da mesma forma, somos todos artistas.

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