segunda-feira, 1 de junho de 2009

"A cultura como ideologia" por Márcia Denser

Nosso presente histórico é caracterizado pela fusão de cultura e economia (não é uma merda? este não seria o sentido profundo do “fim da arte”?).

A cultura (e a arte) não é mais aquele lugar onde negamos ou nos refugiamos das duras realidades da luta pela sobrevivência, isto é, do capital, mas sua mais evidente expressão. Por exemplo, o século XIX utilizou a beleza como arma política contra o materialismo tacanho da sociedade burguesa, dramatizando seu poder negativo para condenar o comércio e o dinheiro e gerar um desejo por transformações pessoais e sociais no coração de uma sociedade industrial horrível.

A arte era um espaço para se projetar novos e melhores mundos. E só o fato de imaginá-los tornava-os potencialmente possíveis. Por que então hoje não podemos vislumbrar na cultura tais funções políticas genuínas? Por que este vazio, este silêncio, este temor inconfessável, estas más intenções declaradas (ou não), essa atmosfera castradora e broxante no lugar da arte? Por que arte e cultura perderam o velho prestígio que gozavam anteriormente? Por que apenas restaram umas tantas manifestações/ocupações/instalações, o caralho, assépticas, anódinas, estúpidas? E dá pra se fazer algo melhor, ou algo realmente bom, genuíno, poderoso, sei lá, sob o império da grana?

Para Jameson[1], esta é uma questão que nos permite medir a distância entre os efeitos de uma mercantilização incompleta e o comércio visto numa escala global e tecnológica, na qual os últimos esconderijos que restavam – o inconsciente e a natureza, ou a produção cultural e estética e a agricultura – foram assimilados pela produção de mercadorias.

Numa era anterior, a arte era uma região além da mercantilização na qual a liberdade estava disponível, até na Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer ainda havia zonas da arte fora da cultura comercial (que para eles seria essencialmente Hollywood). O que define a cultura (e a arte) atual é a supressão de tudo que esteja fora da cultura comercial (porque fora da cultura comercial nada existe), a absorção de todas as formas de arte, alta e baixa, pelo processo de produção de imagens.

Hoje, a imagem é a mercadoria e é por isso que é inútil esperar dela uma negação da sua lógica de produção. É também por isso que toda beleza hoje é meretrícia e que todo apelo a ela, no pseudo-esteticismo contemporâneo, não é um recurso criativo, mas uma manobra ideológica.

Nesse esquema, que coagiu “o espetáculo como forma de resistência” para transformá-lo “em forma de controle social”, a cultura é o grande negócio, daí que investimentos culturais como shows, exposições, óperas, museus, festivais tornam-se parte vital da terceira geração do imaginário ideológico das chamadas “cidades-globais”.

Do ponto de vista urbanístico – que é onde mais se evidencia o uso da cultura como ideologia –, o livro O Mito da Cidade GlobaI, de João Sette Whitaker Ferreira (Rio, Vozes, 2007), levanta questões importantes, relembrando exemplos paradigmáticos já com três décadas de idade, como a Opera Hall de Sidney, a pirâmide do Louvre e a Ópera da Bastilha em Paris, a nova Tate Gallery e o Pavilhão do Milênio em Londres, o museu Guggenheim de Bilbao; grandes exposições culturais como o Brasil-500 em São Paulo, o bicentenário da Revolução Francesa em Paris, sem contar os jogos olímpicos de Barcelona ou a Copa do Mundo da Alemanha.

E aqui ele chama a atenção para o fato de que em todos esses empreendimentos, o evento (ou o monumento) sempre se torna mais importante do que a produção cultural em si, num espelhamento no campo urbanístico daquilo que se tornou paradigma da economia global: o predomínio absoluto da marca acima até do produto. A pirâmide de Pih no Louvre ficou mais importante que o próprio acervo do museu, aliás, alguém já se preocupou em saber exatamente o que há dentro do Guggenheim de Bilbao para além do projeto de Frank Ghery?

Paralelamente à tendência de obscurecimento ou diluição da arte, dos artistas e das condições concretas da criação, acontece uma dilatação do prestígio dos museus, galerias e curadores. É como se os valores da montagem e da promoção prevalecessem sobre os da imaginação e da expressão artística. Numa cultura de mercado, a vitrine, a embalagem, a grife se tornam a chave de um ato que se caracteriza mais como consumo do que como invenção cultural. Consumo do quê? De nada, além de ideologia.

De forma que hoje a arte já não é espaço utópico, tampouco refúgio ou contestação ou transgressão de coisa alguma. Interpenetrada pela lógica do lucro deixou de ser arte. O que é isso então? Bom, isso que chamamos cultura (ou arte, sei lá) passou a ser o veículo ideológico do Pensamento Único. E já que se trata de ideologia (ou interpretação do real difundida pelo poderoso da vez para continuar no poder) – aliás, mais uma – não é nada irreversível tampouco inexorável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário