segunda-feira, 1 de junho de 2009

Entrevista com Ferreira Gullar

O senhor disse durante a palestra que o homem vive no mundo da cul­tura e não no mundo da natureza, que o homem inventa a vida. Como assim?
Pois é, ele se inventa. O homem é uma invenção do homem. Quando nas­cemos, não somos ninguém, não te­mos nome, não sabemos nada. O que a escola nos ensina, o que o bem social nos ensina, o que nossa experiência nos ensina é que faz nos inventarmos como seres humanos. Antes disso, não somos nada. Não significa, no entanto, que nos inventamos a partir do nada. Inventamo-nos a partir de qualidades que já possuímos. Por exemplo, eu não poderia crescer alpinista, pois não te­nho músculo e morro de medo de altu­ra. Em função de alguns elementos, va­mos nos inventando. A civilização egípcia, por exemplo, é inventada sobre determinados valores. Eles ti­nham características que nós já não te­mos, acreditavam em coisas em que já não acreditamos, mas tudo aquilo constituía o mundo e os valores pelos quais eles viveram, lutaram, se apaixo­naram, se mataram. Tudo em função daquilo. A civilização grega já é outra invenção. Não sou a primeira pessoa a dizer que o homem é uma invenção de si próprio. Quando Marx diz que o homem é produto da História, das contradições, de seu trabalho, e afir­ma ainda que Deus não existe, ele es­tá dizendo que o homem é uma inven­ção de si.

Quando Freud estrutura a psicaná­lise, começa a chamar atenção para coisas que as pessoas não perce­biam antes. Ele também estava in­ventando?
Claro. Veja bem, não existem o id, o ego e o superego. Ele inventou uma concepção e organizou a subjetivida­de do homem dentro desses concei­tos. Mas faço questão de dizer que não se trata de uma invenção gratui­ta. A invenção gratuita é do louco. Só que, como ele não parte de elemen­tos objetivos, reais, sua invenção é frágil, não se mantém. E ele sofre ter­rivelmente com isso porque sente que sua invenção não se sustenta e que as outras pessoas não a aceitam porque não há essa relação com o concreto. Para durar, é fundamental que a invenção tenha essa relação com o real. Dependendo de como funciona essa relação, as invenções têm mais ou menos duração.

Onde ficam a poesia e as outras ar­tes dentro dessa concepção?
A arte tem uma função muito im­portante. Por não se basear em ele­mentos conceituais, por ser intuída, imaginada, ela fortalece o vínculo entre o real e o imaginário e a ciên­cia, o imaginário e a filosofia. Dá uma carnadura mais concreta a essa relação porque não é abstrata. É mais afeto, mais emoção. Complementa a filosofia e a ciência para que não haja só teoria ou só prática. O ser humano não é só feito de conceito e de ciên­cia. Essa outra parte é complementa­da pela arte.

O senhor acha que o homem acaba inventando também a sua memória?
Não inventa a memória, mas a transforma em outra coisa. A memó­ria acaba virando vida presente. Dei­xa de ser passado. O homem não quer o passado, e para isso o trans­forma em presente. Picasso diz que a arte é sempre atual. Isso é genial. Cla­ro! Obras de arte te emocionam ago­ra, como emocionaram as pessoas no passado. "A arte só tem de passado o fato de ter sido feita antes. Um dos milagres da arte é fazer com que o passado se torne presente. O passado "passado" é morte. Quando eu pego as bananas da quitanda e as transfor­mo em poesia, estou inserindo-as na nossa vida atual. Elas não pertencem à esfera da quitanda, transformam-se além do tempo.

Durante a palestra o senhor falou da sua viagem feita de São Luís do Maranhão a Teresina, no Piauí, e disse que conheceu Trenzinho Caipira, de Villa Lobos, e tentou colocar a le­tra, mas não conseguiu. Daí, em Buenos Aires, a questão volta ao contrário...
Antes, ao ouvir a música, eu me lembrei da minha infância. Agora, em Buenos Aires, ao falar da minha infância, eu me lembrei da música. Ao ouvir Villa Lobos, automatica­mente remeto à minha infância. Fi­cou dentro de mim. Então, quando eu vou falar de uma, acabo lembran­do da outra.

O senhor diz que a arte tem que emocionar, caso contrário não é ar­te. No entanto, hoje em dia as pes­soas teorizam tanto a arte...
Existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias. Isso não tem cabimento. Para refletir, preciso ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de pintar do Cildo Meirelles para fazer isso. Ele é um excelente pintor, mas por que ele não pinta em vez de fazer o que está fazendo? Co­loca escrito na obra "Urinóis – cocô artificial com planta natural". É para pensarmos sobre isso? O que vamos pensar sobre cocôs e plantas artifi­ciais? Isso é muito pobre. Se ele fi­zesse os guaches que fazia antes, se comunicaria e transmitiria coisas que as pessoas poderiam sentir por meio da arte. Estive agora em Paris e fui ao Museu de Arte Moderna. Só vale pelo acervo de obras realizadas até a dé­cada de 40. Depois disso, nada vale a pena. O museu está vazio, ninguém vai lá. Tinha até uma exposição da Yoko Ono, que só faz besteira tam­bém, mas mesmo assim estava vazio. Só está lá porque ficou famosa de­pois que casou (com o ex-beatle John Lennon). É inacreditável ver os dire­tores do museu convidando esse tipo de gente para expor. O resultado dis­so é que ninguém vai lá ver a exposição. Já o Louvre recebe multi­dões de pessoas, assim como o Mu­seu Picasso.

E quanto aos críticos que escre­vem páginas e páginas sobre essa ar­te conceitual? As vezes, ao terminar­mos de ler uma dessas críticas, nos sentimos péssimos, pois não enten­demos nada.
Nem eles entendem, porque não há o que dizer sobre isso. A Jac Lemer fez uma exposição no Rio de Janeiro com umas maletas de viagem e teve um crítico que citou Heiddeger e Marx para apresentar a exposição. Não tem nada a ver com nada. É um texto indecifrável que, na verdade, não significa nada. O crítico não tem o que dizer e fica inventando. Vai di­zer o quê? Que as maletas estão bem arrumadas no espaço? Realmente não há o que dizer, pois ela nem fez as ma­letas, as comprou prontas. A rigor, não pode haver crítica sobre essa bes­teirada. O difícil é explicar como isso se mantém há décadas. A Bienal de Veneza acabou de ser inaugurada com as mesmas bobagens. Antes de ser aberta ao público, um cara mandou uma proposta de instalação que é um absurdo, e foi obedecida pela direção do evento. A idéia propunha a criação de um muro que fechava a entrada do pavilhão espanhol. Para que a entrada fosse permitida, seria necessária a apresentação do passaporte espa­nhol. Ou seja, ninguém conseguia en­trar. E o incrível é que a Bienal topou isso! Na verdade, o artista estava era fazendo uma grande gozação com a Bienal, gozando a instituição. Essas pessoas são niilistas. Destruíram a ar­te, são pessoas que não têm o que fa­zer na vida e, com razão, gozam uma instituição que quer instituir algo que não existe. Essa instituição tanto vive um impasse que aceita a sugestão de um cara que manda fechar a porta da sua própria exposição. Afinal, se ne­gasse o pedido, ela não seria uma ins­tituição de vanguarda, seria conserva­dora. e como é de vanguarda tem que dizer sim. Só que isso acaba com ela. O que acontece então? Acontece que a Bienal praticamente não tem mais expressão alguma. É moribunda, está se autodestruindo. Aceitar esse tipo de coisa é autodestruição.

Por que os críticos têm tanta raiva da pintura no Brasil?
Acho que foi um processo que co­meçou com as vanguardas do início do século XX e cujo elemento princi­pal é a racionalidade se sobrepondo à fantasia e à criatividade. Isso nasce de uma visão equivocada de que a ciência é superior à intuição e à ima­ginação. Trata-se de uma característi­ca moderna. A ciência é produto da nova idade, logo, tudo o mais é pas­sado e retrógrado. Emoção e intui­ção são velharias. Só que, ao fazer is­so, a arte caminhou para a autodes­truição, pois a imaginação é a maté­ria-prima da arte. Por isso a arte plás­tica acabou, pela exclusão desses ele­mentos. A poesia, o cinema, o teatro e a música não acabaram. A literatu­ra não acabou porque não seguiu Finnegans Wake, senão teria acaba­do. Que romance teria sido escrito se a partir de Finnegans Wake fosse feito como se fez nas artes plásticas, em que Duchamp declarou "daqui não se volta, vamos adiante?" Sim­plesmente não haveria toda a obra de Jorge Luis Borges, de Julio Cortá­zar, de Gabriel Garcia Márquez, de Hemingway... Não haveria os roman­ces modernos italianos, ingleses, franceses, Guimarães Rosa ou Graci­liano Ramos. Vanguarda houve em todas as áreas das artes. Cheguei a ouvir concerto aqui em São Pauto que era uma enceradeira e um liqui­dificador. Mas não preponderou. O Único setor que seguiu isso foram as artes plásticas. É um enigma, não sei explicar o motivo. Além de tudo, ain­da se conta com uma instituição como a Bienal que mantém e financia isso. As exposições estão desertas. Só vão crianças, que são levadas compulsoriamente. A última Bienal foi um fracasso. Todos os vídeos eram chatérrimos e cheios de boba­gens. Em Paris, assisti recentemente a um vídeo que só mostrava um cara berrando sem parar. Interna esse ca­ra! Vídeo bom é aquele que narra al­guma coisa.

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